Como posso ser fluente em inglês se nem minha vida é?

Aos 30, nem sei se vou cozinhar o feijão sem queimá-lo

Vagner de Alencar
7 min readAug 20, 2017
Vila Fundão, Capão Redondo — Zona Sul — SP/2016 — crédito DiCampana Foto Coletivo

O melhor período para aprender línguas é até os seis anos de idade, asseguram especialistas. De forma tão natural, como se os idiomas fossem pudins, emendam a metáfora.

Nessa faixa etária, eu sequer me comunicava bem na minha própria língua materna. Balbuciava a conjugação incorreta de verbos, e os sujeitos e predicados, se fossem gente, certamente viriam dar uma bronca por nunca uni-los corretamente. Plural? Essa “flexão gramatical” não pertencia não apenas ao meu vocabulário infantil, mas ao de nenhum familiar ou amigo próximo. NENHUM.

Aos meus seis anos, minha mãe Osmilda, que cursou até a 4ª série do ensino fundamental, agradecia aos céus pela graça de uma vaga alcançada para o filho primogênito, em uma época em que matrícula era sinônimo de ganhar na loteria. Não à toa, ao longo de meu percurso escolar, dois anos me foram privados. A fachada das escolas públicas de SP indicavam: “Não temos vagas”.

Atualmente, aos 30, e sem nunca ter gostado de pudim, me questiono se esse período ideal para me aletrar na bendita língua inglesa não pudesse ser agora.

Duas semanas atrás, a moça do RH de um importante instituto de educação me ligou para dizer que meu CV se encaixaria à uma vaga em comunicação na empresa. Não tardou para enunciar a temerosa pergunta: “Você é fluente em inglês?”.

Como ter fluência em inglês se minha própria vida está longe de ser fluente?

No busão, a caminho do dentista no Campo Limpo, antigo bairro da zona sul onde vivi por quatro anos da minha vida, respondi à recrutadora que eu não falava beeeem, mas que compreendia o idioma. No dia seguinte, fiquei à espera de seu retorno para agendarmos um teste, necessário a todos os concorrentes. O que não aconteceu até hoje.

Mas a hipótese de acreditar que o momento ideal para falar inglês pode ser agora pouco durou, ou talvez se prolongou tanto quanto o ar que sai da panela de pressão que cozinha o feijão enquanto escrevo este texto.

Como destinar alguns milhares de reais por semestre, por uma aula semanal, se nem mesmo o salário se encaixa às despesas mais banais como aluguel e supermercado? Se os problemas e preocupações, incontáveis nos dedos finos das mãos, bombardeiam, em português, em minha mente inquieta?

Ao contrário da metáfora do pudim, aprender inglês aos 30, sem sair do país ou quiça possuir suporte familiar (diga-se, ser bancado pelos pais), está mais para feijão salgado, para não dizer queimado.

Depois de anos estudando em escolas de idiomas, uma grande amiga decidiu viajar para a Irlanda por reconhecer que aqui não estava aprendendo nada. Só assim, acreditava ela. Acreditávamos nós.

O verbo abdicar foi o mais conjugado por ela no decorrer de dois anos, assim que conseguiu fazer uma poupança, necessária para pagar o curso na gringa e se manter por um ano. Economia possível pelo fato de ela morar com a família numa casa própria e dispor de despesas básicas. O avesso da minha realidade como ser independente desde os 16.

Consegui ir além do verb to be e dos números de zero a 10 em inglês aos 12 anos. Nunca vou me esquecer daquele livro ilustrado achado num lixão em frente à viela onde eu vivia em Paraisópolis, em São Paulo.

Sem qualquer instrução, antes de ingressar em minha primeira aula formal do idioma, na 5ª série do ensino fundamental, aprendi cumprimentos e conjugações verbais que jamais foram apresentados na grade escolar que se estendeu até o fim do ensino médio.

O encarte com as músicas de Ace of Base me ajudou a entender a maior parte das pronúncias das palavras que se incorporaram ao meu vocabulário raso.

Segundo testes aleatórios da internet, meu nível de inglês é intermediário. Status alcançado aos 17 anos, quando me tornei professor de jovens e adultos. Melhor: graças ao dinheiro adquirido com as aulas com o qual passei a pagar um curso na Bahia.

A mensalidade custaria metade do salário mínimo que passava a receber: R$ 160 — valor equivalente aos R$ 120 do curso e a R$ 40 do transporte do povoado à escola, todos os sábados.

A decisão foi difícil. Pedi a opinião de minha mãe, que não endossou um ‘Uau, acho incrível!’, mas também não proferiu um ‘Não faça’, até porque, nem se quiséssemos, o dinheiro sairia do bolso dela.

Ainda assim, com a metade restante, ainda era possível ajudar em casa e livrar Osmilda de gastar seu salário mínimo com pelo menos um dos cinco filhos.

Minha tia paterna, Helenita, indiretamente, foi responsável por me fazer refletir sobre a decisão. Apesar de eu estar no auge na adolescência, não era simples e reconfortante imaginar que eu desembolsaria mais do que ela recebia como merendeira na mesma escola onde ela também estudava a 2ª série do primário.

Para cozinhar a merenda — geralmente arroz com ovo ou café com leite e bolacha cream creacker — e limpar a escola — uma sala grande na qual ocupavam o mesmo espaço estudantes de alfabetização à 4ª série —, Helenita recebia R$ 120. Por mês. Remuneração que, somada aos mais cento e poucos reais do Bolsa Família, tentava sustentar seus cinco filhos.

Decidi me matricular. Na YES, em Vitória da Conquista, iniciei o curso já no nível intermediário. Não porque eu manjava tão bem assim. Longe disso. Caso eu quisesse estudar, essa seria a única turma disponível no único horário em que eu podia chegar à instituição, já que havia um único ônibus da zona rural à cidade.

O busão surgia às 5h45 na Cavada 2, um dos vários povoados da área rural de Barra do Choça. Eram duas horas, antes do desembarque final às 7h45–15 minutos antes do início das aulas. Sobrevivi à turma avançada. Acho que bem. Afinal, nunca me esqueci dos 9,7 ao final do semestre, a maior nota da turma de cerca de 10 alunos.

A rotina de estudante de inglês perdurou por três semestres, até que precisei me mudar para São Paulo 10 anos atrás.

Ao longo dessa década, no entanto, nunca voltei a estudar. Tive algumas aulas do idioma, ano passado, com uma professora francesa voluntária, e, há poucos meses, outras, pagas, com um amigo — um mês e meio antes de viajar para os Estados Unidos.

O nível intermediário, nunca perdido totalmente depois de tanto tempo, foi suficiente para sobreviver nos EUA, apesar das claras restrições linguísticas — assunto para outro texto.

O dinheiro contado para o aluguel e as despesas cotidianas sempre foram superiores aos custos e à disposição para aprender inglês. Mesmo com professores na faculdade e os RHs discursando o quão imprescindível era/é ser fluente no idioma.

Manifestação que não levava em conta o fato de a grana do trabalho como atendente na Feira da Madrugada, no Brás, ou do estágio na Prefeitura, mais tarde, mal dar para pagar o arrendamento do barraco onde eu, literalmente, me escondia.

A ligação da moça do RH, questionando minha fluência, me transportou a todas as vagas de estágio que não ocupei por não ter viajado para fora do país. Ao contrário dos colegas de classe, que, embora nem fluentes fossem, podiam ostentar no CV o ano de intercâmbio ainda no ensino médio ou a pausa na graduação para passar um ano viajando pela Ásia, senão prestando trabalho voluntário na Inglaterra.

foto: Creative Commons Zero (CC0)

Como esquecer de quando uma grande amiga simplesmente foi limada de um processo seletivo numa empresa em que trabalhei por dizer que tinha nível básico de inglês, mesmo contendo todos os requisitos práticos para a vaga de designer?

Ao contrário do cara que ocupou o posto, no qual ficou apenas algumas semanas, pós-graduado não sei onde e fluente em inglês — embora nunca tenha precisado comprovar tal fluência.

Por insistência de minha amiga, já que a própria contratante garantiu que era perfeita para a vaga — “apesar do inglês” — , ela foi testada ao limite — o que nunca aconteceu com os dois candidatos anteriores.

Contratante essa que havia aprendido inglês ainda na adolescência, quando os pais a enviaram para cursar o ensino médio na Oceania, sem contar a fluência em francês por causa do mestrado na Europa.

Oras, como não saber inglês hoje em dia, principalmente tendo à mão tantos apps e aulas gratuitas disponíveis no Youtube? É só se esforçar, diriam os cooptados pelo discurso do mérito. Talvez tenha dito a si mesma, enquanto negava, pela primeira vez, o CV de minha amiga.

Contratada, cinco anos se passaram desde o primeiro dia de trabalho. Me perguntem se em algum momento ela precisou falar o idioma?

Desde criança queria saber inglês para entender as músicas que ouvia nas rádios, talvez de modo natural como a paixão dos meus irmãos por pudim, que raramente minha mãe preparava.

Na fase adulta, continuo querendo entender essas mesmas canções sem precisar correr para o Vagalume ou Google Tradutor. Também para concorrer a vagas de emprego, ainda ocupadas pelo coleguinha que fala muito bem inglês porque trabalhou durante as férias de verão na Disney.

Para, sabe-se lá quando, ser capaz de alcançar a nota exigida pelo Toefl (teste de inglês como uma língua estrangeira) para ganhar uma bolsa e estudar no exterior. Ter a oportunidade de também poder ganhar o mundo!

Não sei se vou aprender a gostar de pudim. Queria saborear a alegria de poder falar, fluentemente, inglês um (breve) dia. Até lá, ou neste momento, só preciso não salgar ou queimar o feijão, que, assim como estudar inglês, também está caro. Vish, falando nisso, já tá na hora de desligar a panela de pressão!

Um beijo, um salve e até já!

Vagner de Alencar
vagnerdealencar.mural@gmail.com

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Vagner de Alencar

Jornalista, autor do livro "Cidade do Paraíso" e cofundador da Agência Mural de Jornalismo das Periferias