The History of O.J. de JAY-Z é a história negra americana

Vagner Soares
12 min readJul 20, 2017

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JAY-Z e Mark Romanek numa aula sobre racismo.

Dias atrás, JAY-Z lançou o clipe de “The History of O.J.”, é impressionante como colocaram tantas referências tanto na música quanto no clipe que ajudam a entender vários dos estereótipos que são vinculados aos negros. JAY-Z foi extremamente feliz na composição da letra e Mark Romanek foi brilhante na direção de arte.

A música usa um sample de "Four Women" da Nina Simone que diz:

My skin is black (Minha pele é preta)
My arms are long (Meus braços são longos)
My hair is woolly (Meu cabelo é enrolado)
My back is strong (Minhas costas são fortes)
Strong enough to take the pain (Fortes suficientes para aguentar a dor)
Inflicted again and again (Infligida de novo e de novo)
What do they call me? (Do que eles me chamam)
My name is Aunt Sarah (Meu nome é Tia Sarah)
My name is Aunt Sarah (Meu nome é Tia Sarah)
Aunt Sarah (Tia Sarah)

A música fala das características e da força da mulher negra e de que apesar disso ela é apenas a "Aunt Sarah" (Tia Sarah), que sugere o estereótipo da Mammy como na marca Aunt Jemima ou a Aunt Chloe no livro "Uncle Tom's Cabin" (Cabana do Pai Tomás).

A Mammy é o primeiro estereótipo aqui, é o clássico da mulher negra, assexuada, que cozinha super bem, sempre esconde o cabelo e suas raízes com um lenço, não possui família ou laços fraternos, exceto com os filhos dos brancos, que até consideram ela da família. A Tia Anastácia do Sítio do Pica-Pau Amarelo é um exemplo de Mammy no Brasil.

JAY-Z canta no refrão de "The History of O.J.":

Light nigga, dark nigga, (Preto claro, Preto escuro)
Faux nigga, real nigga, (Preto falso, Preto verdadeiro)
Rich nigga, poor nigga, (Preto rico, Preto pobre)
House nigga, field nigga,(Preto da casa, Preto do campo)
Still nigga, still nigga (Continua preto, continua preto)

Que pode ser resumido a não importa como você se age, como você é, o que você faz. Um preto, será sempre um preto.

Em um dos primeiros versos:

O.J. like, “I’m not black, I’m O.J.” (O.J. era tipo, "Eu não sou preto, sou O.J.")
…okay

O.J. Simpson nunca se assumiu como negro, se achava diferente por não se envolver em questões raciais e que sempre seria tratado como branco. Porém durante seu julgamento, em que foi acusado de ter matado sua esposa branca, os Estados Unidos viam o caso como um caso racial, apesar de O.J. não se considerar negro. "Still Nigga".

O estilo cartoon adotado por JAY-Z e por Romanek faz menção direta aos Ministrel Cartoons que são estereotipações racistas e exageradas dos negros.
Como nesse exemplo aqui do Scrub me Mamma with a Boogie Beat, do Walter Lantz, criador do Pica-Pau.

JAY-Z, personagem principal de seu clipe, aparece como "JAYBO", um trocadilho com seu nome e o nome de "Sambo". Sambo quem?

Em 1898 foi lançado nos EUA um livro infantil chamado “The History of Little Black Sambo” (A História do Pequeno Negro Sambo). Resumidamente, o livro conta a história de um garoto negro que vivia sem muitas preocupações e enganou um grupo de tigres para roubar a comida deles. Para os americanos Sambo é o clássico garoto negro, malandro e preguiçoso.

Curiosidade: No início do século XX, os negros só poderiam subir em palcos em duplas porque “não dava pra fazer palhaçadas sozinho”, também era necessário usar luvas brancas e pintar ao redor dos olhos, para parecerem brancos, que foram pintados de preto. Quando JAY-Z diz “faux nigga”, é feita uma referência direta a Bojangles Robinson, ator e dançarino americano que por muito tempo utilizou as luvas brancas e muitas vezes lembrado por interpretar papéis com o estereótipo do Uncle Tom.

Pra muita gente o “House Nigga” do clipe é Stephen, personagem do filme “Django Unchained” interpretado pelo Samuel L. Jackson, a grande verdade é que Stephen também foi criado com referência no Pai Tomás.

Durante os debates sobre o fim da escravidão em 1852, Harriet Beecher Stowe escreveu o livro “Uncle Tom’s Cabin” (Cabana do Pai Tomás em português). O Uncle Tom do livro era um negro que ajudava outros negros a fugir e ganhar a liberdade e por isso morreu espancado. Uncle Tom em sua essência é um mártir negro, um herói. Mas por que os brancos deixariam um personagem negro ser visto como herói? Obviamente não deixaram. Deturparam a imagem do Uncle Tom até a imagem dele ser vista como a de um negro que só existe para agradar e ajudar os brancos. Então hoje quando se referem a um negro como Uncle Tom/Pai Tomás, estão se referindo a um negro que não se importa com as próprias causas, mas sim a dos brancos.

A melancia é um ponto curioso sobre o racismo nos Estados Unidos. Melancia não existia na América nem na Europa, sementes foram trazidas ao continente americano por escravos, e como o homem branco não conhecia o fruto deixava para os escravos comerem. Os negros comiam a fruta e se lambuzavam como na África, por isso não é raro ver desenhos racistas com negros comendo melancia como animais num tom extremamente caricato e maldoso.

Essa talvez seja a referência mais explícita de todo o clipe. Houve uma época na história americana em que os negros só podiam se sentar no fundo dos ônibus. Rosa Parks se tornou um símbolo da luta contra a segregação racial por sentar numa parte para brancos e recusar a se levantar para dar o lugar a um homem branco.

É possível perceber a tristeza nos personagens que estão no palco, exceto a da dançarina, que está seminua e é o grande entretenimento. Desde sempre o corpo da mulher negra foi hipersexualizado e as mulheres negras tratadas não como indivíduo, mas como apenas um corpo, alguém que existe apenas para cumprir os desejos carnais. Parece bastante com o conceito das “mulatas” no Brasil não?

Essa imagem é a reprodução de uma das fotos de Huey P. Newton líder do Black Panther Party, a foto mostra Huey segurando um rifle e uma lança sentado em uma cadeira se fosse um trono, representando o poder e a força dos Black Panthers. Ainda sobre essa foto o poster do filme do Pantera Negra da Marvel também faz referência a foto clássica de Newton.

O.J. ganhou o apelido de Juice por conta da abreviação de Orange Juice (Suco de Laranja) ser também O.J. Nessa curta cena, JAY-Z aparece tomando suco de laranja na frente de um cartão postal da Flórida, que é um dos estados mais racistas dos EUA e durante muito tempo foi um dos principais locais onde houve conflitos na guerra civil americana.

Aqui temos a diferença entre o “House Nigga” (Negro da casa) e o “Field Nigga” (Negro do campo), Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil os negros de pele mais clara e mais fracos eram os escolhidos para trabalhar dentro das casas, fazendo serviço que não exigia tanto fisicamente, porque o raciocínio é que esses negros eram mais fáceis de ser domesticados, enquanto negros mais fortes e pele mais escura eram obrigados a trabalhar no campo pois se assemelhavam a animais segundo os escravocratas.

“I’ma play the corners where the hustlers be” (Estou nas esquinas onde os malandros estão)

Em mais uma cena curta e cheia de significado, JAY-Z se encontra numa esquina que de um lado tem um mendigo e do outro um cafetão com uma prostituta. Muitos negros por conta das dificuldades sociais históricas impostas pelo racismo, acabam tendo como opções a miséria como a do mendigo; partir para a ilegalidade e imoralidade de explorar seus pares como o cafetão ou trabalhar sendo explorado nas mais diversas e cruéis formas num subemprego como a prostituta.

Essa é uma crítica sutil a própria comunidade negra. Muitas vezes o negro está preocupado apenas com ele e não escuta os seus iguais. Segundo conceito de “Ubuntu”, expressão africana que diz algo como “Eu sou porque nós somos”, sintetiza que o negro pode ascender se todos os outros negros se apoiarem, dessa forma toda a comunidade negra pode crescer junto.

Please don’t die over your neighbourhood (Por favor, não morra por sua vizinhança)

Repare nas manchas de sangue nas batas dos anjos. Desde a época da escravidão, até hoje os negros continuam sendo os que mais morrem de forma violenta, na letra de JAY-Z, enquanto os anjos sobem pode ser uma referência ao fato dessa violência hoje estar concentrada majoritariamente nos guetos.

Um grande estereótipo é o da criança negra que precisa viver sozinha, sem pais, sem educação, quase um selvagem. Essa mesma criança volta a aparecer mais algumas vezes no vídeo.

Novamente uma referência a Mammy, dessa vez visual, ao invés de apenas no sample da canção de Nina Simone.

Novamente Mark Romanek usa o algodão como recurso visual, isso acontece porque no período escravagista americano o algodão era colhido exclusivamente por negros. A ironia fica por conta do algodão colhido por negros ser o material das roupas dos membros da Ku Klux Klan, talvez o mais conhecido dos grupos racistas.

JAY-Z na letra de "The History of O.J." fala que é importante o negro ter dinheiro, porém não é a coisa mais importante.

I coulda bought a place in DUMBO before it was DUMBO
For like 2 million
That same building today is worth 25 million
Guess how I’m feelin’? Dumb-o

Eu poderia ter comprado um lugar em DUMBO antes de ser DUMBO
Por tipo 2 milhões
O mesmo prédio hoje vale 25 milhões
Adivinha como estou me sentindo? Burr-o

JAY-Z, diz que se arrepende de não ter comprado um prédio numa região do Brooklyn chamada DUMBO (Down Under Manhattan Bridge Overpass), que é uma região que se valorizou muito durante os últimos anos.

You wanna know what’s more important than throwin’ away money at a strip club?
Credit.

Você quer saber o que é mais importante que gastar dinheiro num clube de strip tease?
Crédito.

JAY-Z nessa linha da música torna a afirmar que não é o dinheiro que fará o negro ser visto com melhores olhos, mesmo que essa quantidade de dinheiro seja grande o suficiente pra esbanjar em coisas supérfluas, como num clube de striptease.

Financial freedom my only hope
Fuck livin’ rich and dyin’ broke
I bought some artwork for 1 million
2 years later, that shit worth 2 million
Few years later, that shit worth 8 million
I can’t wait to give this shit to my children

Liberdade financeira é minha única esperança
Foda-se viver rico e morrer pobre
Eu comprei obras de arte por 1 milhão
2 anos depois aquela porcaria valia 2 milhões
Anos depois, aquela porcaria valia 8 milhões
Eu mal posso esperar pra dar isso para meus filhos

JAY-Z vê a chance de deixar a arte como um legado financeiro para os filhos, para manter o dinheiro mais próximo aos negros.

Nessa cena vemos novamente a criança desacompanhada dessa vez numa galeria de arte sem entender o que vê, certamente por falta de instrução ou baixa escolaridade. Usando quadros que parecem ser do movimento cubista, JAY-Z faz uma auto referência com “Picasso Baby” música anterior em que menciona artistas plásticos como Pablo Picasso, Mark Rothko, Jeff Koons, Andy Warhol, Jean Michel Basquiat e Leonardo Da Vinci.

É possível ver por todo o clipe cenas com cruzes pegando fogo. A queima das cruzes é uma prática adotada pela Ku Klux Klan e também é considerado um de seus maiores símbolos.

Mark Romanek mostra um navio negreiro que por fora se assemelha muito a um navio da marinha americana, inclusive com os marinheiros perfilados fazendo continência. Seria uma menção a que a escravidão e o racismo estão tão enraizados nos Estados Unidos quanto o poderio bélico americano e mais do que isso, um endossa o outro.

As poucas fotos de famílias negras americanas que são possíveis de serem encontradas, mostram a família geralmente numa casa em condições precárias e com um grande número de filhos sempre com um semblante triste que transmite o sofrimento dos negros.

Romanek e JAY-Z utilizam o refrão e imagem de monumentos famosos de países para mostrar que “Nigga, still nigga” é um problema mundial, não apenas local. Não importa se na França, Inglaterra, Egito, Itália ou Estados Unidos, um negro continuará sempre sendo e visto como um negro.

Nos Jogos Olímpicos de 1968 na Cidade do México a prova dos 200m rasos foi vencida por Tommy Smith. Os jogos ficaram marcados pelo gesto dos Panteras Negras feito durante o hino americano pelo campeão Tommy Smith e por John Carlos que foi medalhista de bronze. O gesto significava protesto e resistência. Além dos punhos erguidos e cerrados eles subiram no pódio descalços, pois isso simboliza os bolsões de pobreza negra dos Estados Unidos, Carlos também usou um colar de grãos e Smith um lenço preto no pescoço, que eram referência aos negros linchados na história americana.

Essa curta cena mostra o medo, tristeza e como os negros eram tratados como mercadoria, não importando gênero nem idade.

Em 1930, no Condado de Marion na Flórida, ocorreu o linchamento de Thomas Shipp e Abram Smith, dois jovens negros acusados injustamente de terem estuprado uma jovem. O acusador, o namorado da suposta vítima, havia mentido para as autoridades. Brancos derrubaram as portas da cadeia onde estavam presos, lincharam e expuseram os corpos pendurados em árvores. Fotos de linchamentos muitas vezes eram impressas em cartões postais para mostrar como deveriam tratar os negros. Essa cena no clipe é a reprodução da foto do linchamento.

Os negros tiveram de lutar junto aos brancos na Guerra Civil Americana, aqui eles são representados pelas silhuetas que marcham atrás da bandeira e carregam lanças, ao invés de armas de fogo.

A cena mostra que mesmo JAY-Z se sentindo dumb-o (burro) ele tenta manter o dinheiro dentro da sua própria comunidade negra utilizando o dinheiro do próprio bolso para isso. Um exemplo disso foi quando JAY-Z comprou o time de basquete New Jersey Nets e levou para a cidade e o bairro onde cresceu, transformando assim o time em Brooklyn Nets.

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Vagner Soares

Art Director, Father and Mad. Not necessarily in that order.