A minha mãe foi a personificação do rock ’n’ roll

Matheus Valduga Martins
4 min readApr 12, 2021

Além de ser apaixonado por Música, isso foi o que mais me conectou com a minha mãe. Esse texto vai ser sobre essa relação.

Sim. Ela foi a personificação do rock ’n’ roll. Nada de Mick Jagger, Jimi Hendrix ou Angus Young.
Foi a Glaucia.

Ela nunca foi essa “mamãe” de comercial de margarina. Nunca foi santa.
Era doce, amorosa, carinhosa, engraçada e divertida.
E ao mesmo tempo era agressiva (nas palavras), temperamental, orgulhosa e insana.
Assim como o rock. Transitava entre Cat Power e Janis Joplin.

Já disse outras vezes que curto muito artistas, obras e qualquer coisa que lide com a dualidade das pessoas. Com a mistura.
Acho que de certa forma é pra tentar entender também essa força da natureza que era a Glaucia.

É sério. Não por ser minha mãe.
É que não havia nada que controlasse ou mudasse a cabeça dela.

Diagnosticada como bipolar grave e em diversos momentos foi dependente química e alcoólatra.
Por outro lado criou 2 filhos sozinha, cuidou da casa, trabalhou e era a “tia legal” que os meus amigos adoravam.

Quando bem, ela era a pessoa mais legal de se ter por perto.
Quando mal, ela era a pessoa mais difícil de se ter por perto.

Nem preto nem branco.
Em uns dias ela era cinza como a London Calling, em outros, colorida como o Woodstock.

Foi com ela que aprendi a ouvir música.
Faxinava a casa, fazia almoço, mandava o Kuka comer mais e parar quieto. Arrumava os cadernos, passava o uniforme, mandava eu comer menos e desligar o video-game. Tudo isso ouvindo Gipsy Kings, Bob Marley, Calypso, Skank, Tribalistas, Dire Straits e Kenny G.
Até hoje lembro de jogando Dragon Ball no play 1 e ouvir o solo de Sultains of Swing pela primeira vez. Pausei e fui ver qual era o número da faixa do CD. Quando tocamos Sultains ao vivo no nosso primeiro show, falei no microfone: “alguém sabe se meu irmão tá por aí?… tá? Ô Kuka, essa é da época que a gente morava com a mãe. Se liga!”

Em 2004 eu tava viciado em Gorillaz. Usava uma camiseta deles dia sim-dia também. Fui na casa do meu colega e levei umas revistas deles.
“GABRIEL! É UMA BANDA DE DESENHO! OLHA ISSO!”
A mãe do Gabriel disse que aquilo era do diabo e me mandou ler Nosso Amiguinho.
A Glaucia deu risada quando contei isso e me deu 5 reais pra comprar um CD pirata d’As 20+ do Guns ’n’ Roses.
Na nossa casa era rádio ligado sempre. Música alta sempre.

Quando crianças/adolescentes, o Lucas foi pra música gaúcha e dançava no CTG.
Eu assisti Escola de Rock, fui pro rock ’n’ roll e formei uma banda.
Música.
Das formas mais simples, tradicionais e banais.
Mas ainda sim, Música.

Novamente: ela não era uma Madre Teresa.
Eu e o mano fomos morar na casa do vô e da vó em 2004. Eu com 10 e ele com 8. Dali fomos fazer nossa vida.
Nunca mais moramos com ela.
Mas sim, tivemos ótimos momentos durante esses anos.

Entre essa época e 2020, ela transitou pela fase fofinha do início dos Beatles e pela de revolta dos Stones.

No meio de 2019 ficamos muito próximos. Por uns 6 meses quase toda sexta-feira a gente falava sobre a Vida.
Desabafos, choros, risadas e medos.

Eu levei Plutão Já foi Planeta e The White Stripes, ela trouxe Supertrump e Pet Shop Boys.
Horas e horas onde um defendia os anos 80 e o outro os 90.
The Dark Side of The Moon é melhor que The Wall?
Nos vocais de Great Gig in the Sky eu achava que as mulheres estavam representando sofrimento. Ela dizia ser orgasmos.
Até hoje acredito que Beatles é maior que Stones.
Ela não se importava.

Odiava Beatles pois eles eram “muito certinhos”.

Essa era a mãe.
Nessa relação eu sou Beatles: disciplinado, criativo e difícil de lidar.
Ela era Stones: rebelde, autêntica e difícil de lidar.
…o Kuka hoje provavelmente é o Gusttavo Lima: centrado, showman e o melhor no que faz.
Dois explosivos, um implosivo.

Sinto que minha mãe lutava contra a cabeça dela na maior parte do tempo e não conseguiu se encaixar direito aqui nesse mundo.
Ela sofreu muito, e quem esteve na volta dela sofreu muito também.
Hoje ela não sofre mais.
De alguma forma decidiu que não era mais possível lidar com isso.

Esses dias vi que foi o aniversário do Kurt Cobain. E claro, ele é a cara e a alma do rock dos anos 90.
…mas ele não chegava aos PÉS da Glaucia. Os gritos dela faziam o Kurt parecer o Cat Stevens: fofinho e sem graça.

Nesse último período forte de amizade que tivemos, eu já era ateu e ela acreditava em Deus.
Nas horas de saudade eu não rezo. Toco músicas nos instrumentos e no fone de ouvido.
Aprendi com ela a usar a música como terapia e como solução pras questões desconhecidas.

Até uns dias atrás eu defendia com os guris que o rock não tinha morrido.
Mas mudei de ideia.
O rock morreu no dia 02/01/2021.

Te amo, mãe. Um dia eu ouço o álbum que tu me indicou “da mulher pelada pedindo carona”, do Roger Waters.

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O LP que estampa esse escrito é um presente que ela deu de aniversário pra minha tia em 1986. Ela tinha 17 anos na época.

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