Como a 1ª morte por covid-19 no Brasil me afeta

Valquíria Homero
4 min readMar 18, 2020

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Paciente na sala de espera do Hospital Regional da Asa Norte (Brasília-DF) usando máscara. Foto por Sérgio Lima/Poder360
O Brasil registrou as primeiras mortes de covid-19 nesta terça-feira (17/3). Mais de 290 pessoas já foram diagnosticadas com a doença no país até então | Foto por Sérgio Lima, do Poder360

Eu imagino a equipe médica quando o bipe contínuo anunciou que, apesar dos esforços de todos, aquele senhor de 62 se tornou a primeira vítima fatal da covid-19 no Brasil.

Eu imagino a garganta seca do médico ou médica que precisou declara o fato em voz alta.

Eu imagino se as pessoas naquela sala olharam umas para as outras por trás das máscaras, apreensivas, num cálculo silencioso de quantas vezes aquela cena iria se repetir. Ou se apenas contemplaram o rosto do homem que não abrirá os olhos para contemplar todo o pesar e preocupação que o fim da vida dele levará a um país inteiro.

Eu imagino meus colegas jornalistas se precipitando na direção das assessorias e de todas as fontes em seus arsenais para conseguir a informação correta ― porque as pessoas precisam saber.

Porque estamos em guerra contra um inimigo invisível e silencioso, e a informação é a única arma que temos para nos defender do pânico e confusão que ele pode armar contra nós. Sentimentos que podem ser mais letais e duradouros que a própria doença, se não lhe opormos resistência.

E eu imagino ― eu espero ― que meus colegas, em meio à pressão do deadline, ao receio de se expor à contaminação e à necessidade de manter a calma no fronte de batalha, tenham se lembrado que a vítima tem nome, sobrenome e família.

Que ele não é só um número que vamos atualizar no fim do dia e colocar em um infográfico para o leitor entender.

Além de devaneios

Como a maioria dos seres humanos nesse momento, eu espero, imagino e anseio muitas coisas. E é aí que eu preciso exercitar uma faculdade que é, de certa forma, o contrário da imaginação: a memória.

Eu preciso lembrar que doenças fazem parte da nossa realidade e que, por devastadoras que sejam, jamais derrotaram a nossa espécie. A peste negra, por exemplo, dizimou metade da população europeia no século XIV. E a Europa, bem ou mal, continua aí.

Eu preciso lembrar que é uma questão de tempo até que isso passe. Já lidamos com o coronavírus em 2003 e 2012, e a maior parte das pessoas é infectada por algum tipo de coronavírus ao longo da vida.

Eu preciso lembrar que a taxa de mortalidade da covid-19 é menor que 4%, enquanto a taxa de recuperação supera os 42%. E isso porque ainda nem temos um tratamento específico para a doença em si.

Eu preciso lembrar também que nossa ciência e comunicação nunca estiveram tão avançados e, portanto, nunca estivemos tão preparados para desenvolver tratamentos e vacinas como estamos hoje. China e Estados Unidos já testam vacinas em seres humanos.

Eu preciso lembrar que é inútil me desesperar em relação às coisas que fogem do meu controle. E que isso não vale só para pandemias de coronavírus e queda nas Bolsas de Valores.

Eu preciso lembrar que sou responsável pelas minhas próprias atitudes e que, em vez de especular, eu deveria me esforçar em aplicar as recomendações de higiene e precaução no meu dia a dia.

Eu preciso lembrar que é preferível alguns desconfortos sociais agora do que arriscar as consequências para mim e para os outros. Que eu não vou morrer por deixar de ir ao bar nessa sexta, mas que alguém pode morrer se eu pegar e repassar covid-19.

Eu preciso lembrar que vivemos em um mundo conectado e que muita informação não é o mesmo que informação verdadeira. Empresas de tecnologia investiram pelo menos 10 milhões de euros (cerca de R$ 55 milhões) para rastrear e combater fakenews, mas sem muito sucesso.

O principal problema? As informações falsas não vem de grupos organizados e sistemáticos, mas de rumores espalhados por usuários individuais.

Eu preciso lembrar que minha ânsia em espalhar informação relevante não pode atropelar o processo de apuração e checagem ― e que o mundo seria um lugar menos desesperador se todos fizessem o mesmo.

Enfim, eu preciso lembrar que existem outras coisas além de coronavírus (coisa difícil para uma jornalista nesse momento).

Então, com toda licença, agora eu vou cuidar de outras coisas. Acho que você deveria fazer o mesmo.

No segundo que eu vi a notícia na tela do meu celular, senti um peso no estômago. Confesso que meu primeiro reflexo foi repassar o dado para minha redação. Mas depois, tudo isso acima (e muito mais) ficou zunindo na minha cabeça e não me deixaria em paz até eu colocar na tela. Quando eu terminei de revisar o texto, chegou a notícia que uma mulher também falecera da doença. Os dados até o momento são incertos, mas a verdade é que mais pessoas morreram –e outras mais morrerão antes que essa história termine. Meus sinceros sentimentos às famílias e também aos profissionais de saúde que estão na linha de frente dessa crise.

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Valquíria Homero

jornalista, designer gráfica e mais meia dúzia de coisas que quase não dá tempo de fazer.