A representação do corpo humano na arte

Júlia Vasconcelos
5 min readJul 31, 2019

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Estatueta da Vênus de Willendorf esculpida entre 28 000 e 25 000 anos antes de Cristo.
A Vênus de Willendorf. Imagem: F5 — Uol

Uma das primeiras representações do corpo humano na arte que se tem conhecimento são as Vênus do período paleolítico, entre elas, a Vênus de Willendorf, uma pequena escultura tida como uma representação humana de proporções irreais da anatomia feminina. Suas formas levam a crer que se trata de um autorretrato seguindo a maneira que as mulheres pré-históricas enxergavam seus corpos em uma época sem espelhos. De lá pra cá a representação da figura humana passou por diversos padrões estéticos e estudá-los nos leva a entender sua influência em como expressamos a nossa imagem na contemporaneidade.

Da mesma maneira que as vênus do paleolítico seguem certas convenções artísticas, obras posteriores apresentaram características parecidas. Os egípcios, por exemplo, possuíam rigorosos padrões estéticos. Suas representações eram feitas sempre a partir do seu ângulo mais característico de modo que o rosto era representado de perfil com apenas um olho, assim como visto frontalmente, na lateral do rosto. Já a metade superior do corpo era sempre traduzida de frente e os pés de perfil contornados a partir do dedão como se possuísse dois pés esquerdos. Tais regras lhes permitiam incluir tudo o que eles consideravam de essencial na imagem humana. Além disso, o tamanho das figuras era extremamente importante pois indicava a posição social da pessoa em questão: um Faraó era representado maior que sua esposa e consequentemente ainda maior que um criado.

Outros períodos também possuíam peculiaridades em suas representações. Na pintura gótica por exemplo, o corpo humano existe apenas para contar uma narrativa bíblica, não existindo então a preocupação com as proporções e a fidelidade com o real. Já no período renascentista com a influência do greco-romano antigo e os estudos sobre perspectiva, a principal característica é demarcada pela anatomia bem representada. Parte disso advém dos padrões artísticos grego que buscavam retratar a figura do ser humano com extrema complexidade, algo facilmente encontrado nas esculturas dessa época. A exemplo disso cabe ressaltar a escultura chamada de Laocoonte e seus filhos que data do período helenístico onde se é possível encontrar um estudo extraordinário dos músculos e do movimento do corpo humano, expressões faciais bem representadas e carregadas de sentimentos.

Escultura em mármore: Laocoonte e seus filhos.
Escultura de mármore Laocoonte e seus filhos atualmente exposta no Museu do Vaticano. Imagem: Epoch Times.

Já na pintura renascentista nomeada O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli, o corpo feminino da Vênus nua é o centro do quadro, nele nota-se uma preocupação semelhante a do período helenístico com a representação humana, algo bastante característico do renascimento e que passou a interferir no ideal de corpo feminino tanto na arte quanto na vida em sociedade até os dias atuais influenciando principalmente os ideais de beleza feminino que possuímos na nossa contemporaneidade: o bonito é ser uma mulher alta, magra e de proporções quase inalcançáveis.

No entanto, tais obras nunca representam um espelho fiel da realidade. Na verdade, elas carregam sempre a impressão do intelecto de quem as criou. Ou seja, pode-se dizer que todas as representações da imagem humana se tratam de um recorte da sociedade, uma forma de se ver algo, tanto pela escolha do pintor ou escultor do que vai ser representado, quanto pela forma que ele escolheu de representar e isso é fortemente traduzido na representação do corpo feminino onde mulheres muito comumente se tornam objetos para serem vistos por homens.

Quadros como Vênus ao espelho do Diego Velázquez exemplificam a situação. Em sua representação a mulher se encontra observando o seu reflexo diante de um espelho. Além do padrão do seu corpo estar associado ao ideal de perfeição grego, o fato dela estar encarando sua imagem cede permissão ao observador, que deve ser preferencialmente um homem, para admirá-la também. Portanto, a forma que o pintor decidiu retratar esta mulher é de extrema importância para complementar o olhar do espectador, constituindo assim um recorte da sociedade machista vigente até os dias atuais. Por isso podemos dizer que a arte é um objeto de representação política e que também serviu ao longo da história para pôr a mulher em seu local “ideal” devendo então respeitar o seu papel de sujeição ao homem.

Pintura de Diego Velázquez: Vênus ao espelho. Imagem: BlancArtBlog

Felizmente rupturas são bastantes comuns. Marie-Guillemine Benoist, uma pintora francesa neoclassicista, quebra esse ideal ao representar uma mulher negra apenas posando para um retrato sem acrescentar nenhum elemento exótico ou erótico em seu quadro Portrait d’une négress. Talvez um homem possa não concordar com minha afirmação e se sentir igualmente satisfeito ao observá-lo visto que o seio da representada está desnudo, mas, ainda assim, tal quadro demonstra uma ruptura significativa dos padrões artísticos de representação do corpo dado que, acima de tudo, é uma figura negra em questão.

Quadro Portrait d’une négress da pintora Marie-Guillemine Benoist.
Marie-Guillemine Benoist: Portrait d’une négress. Imagem: Smarthistory

Outro exemplo relevante dessa mudança se encontra nas vanguardas. Foi a possibilidade de simplificação das formas que possibilitou novas configurações artísticas e deu origem a esculturas como O homem que aponta de Alberto Giacometti e pinturas como As Meninas de Avignon, de Picasso que demonstram que, para figurar o ser humano, não necessariamente é preciso o compromisso com a realidade ou com o detalhamento da anatomia como nas esculturas gregas.

O homem que aponta de Alberto Giacometti As Meninas de Avignon de Pablo Picasso
O homem que aponta e As Meninas de Avignon.

Sendo assim, alguns ideais criados na arte nos influenciam até os dias atuais na medida em que, no geral, ainda buscamos a perfeição da representação da nossa imagem em nossas redes sociais e ainda tentamos alcançá-los em nossas vidas fora das telas — uma consequência, pode-se dizer, direta da arte grega no seu período helenístico pois estamos igualmente em busca da melhor forma de expor nossos corpos para o mundo.

**Ensaio feito para fins acadêmicos.

REFERÊNCIAS

AS DEUSAS VÊNUS DO PALEOLÍTICO. [S. l.], 7 dez. 2016. Disponível em: https://netnature.wordpress.com/2016/12/07/as-deusas-venus-do-paleolitico/. Acesso em: 31 maio 2019.

BAPTISTA, Manuel. REPRESENTAÇÃO DO CORPO HUMANO NA ARTE. [S. l.], 14 set. 2016. Disponível em: http://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2016/09/representacao-do-corpo-humano-na-arte.html. Acesso em: 31 maio 2019.

GOMBRICH, E. H. A HISTÓRIA DA ARTE. 16. ed. [S. l.]: LTC, 2012. 688 p.

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Júlia Vasconcelos

UX/UI Designer graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco. Escreve sobre vida, carreira, tendências e pautas de gênero.