We May Destroy You

Veronica Martz
veronicamartz
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3 min readSep 4, 2020

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Creio que, assim como eu, quem terminou “I May Destroy You” está num estado catártico e não consegue explicar ao que assistiu. O máximo que consigo transformar em palavras é que me senti adentrando a um lugar muito íntimo de alguém e por isso atribuo à experiência um sentido sacro, talvez pelo conhecimento prévio da verdade por trás da ficção, a história de violência vivenciada pela própria Michaela Coel.

Refletir sobre aproximou-me de um conceito pensado por nossa Conceição Evaristo, o de escrevivência, “escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida de pessoas pretas” e despertou-me a coragem de escrever sobre a minha vivência.

A verdade é que conceber isso não é fácil, não está sendo pra mim agora e imagino que não deve ter sido para Michaela. Não tenho conhecimento do manejo de seu processo terapêutico, mas acredito que culminou na escrevivência porque agora temos ‘I May Destroy You’, a série mais importante do ano.

Acontece que a escrevivência de Michaela despertou a minha assim como sua cura, a minha cura.

A consciência do meu abuso se deu em meio ao meu processo de terapia, tive apoio profissional que me ajudou a refletir sobre consentimento e que quando quebrado mesmo em meio a uma relação consensual, a continuidade a partir dali seria abuso. Na série, chama-me a atenção o despertar da consciência das violências vividas por Arabella, sobre o conhecimento da primeira agressão e os sentimentos de impotência e culpabilização por todo contexto que se deu. E a explosão e reação com a sutilidade da segunda agressão, e como a vivência e o alerta de outras mulheres sobre o ato violento que é a retirada da camisinha durante um ato sexual sem o conhecimento e assentimento do outro, que fizeram-na expor e denunciar seu segundo abusador. A série produziu em mim o mesmo efeito que aquele episódio de podcast teve em Arabella. Eu que nunca tive coragem de nomear devidamente, a verdade chocou-me igualmente. “É estupro.” enfaticamente respondidas, Arabella e eu.

A escrevivência é um processo de cura registrado que presta a provocar assimilação em nossos pares. A minha história ocorreu há mais de um ano e só consegui conceber o que aconteceu após outra mulher criar uma narrativa do que houve com ela. ‘I May Destroy You’ é uma espécie de chamamento para se criar registro, memória, ressignificação e cura.

O que se vive, tem que ser registrado, pois a partir do momento em que se apropria da sua narrativa e faz dela chave de libertação para sua dor, o termo vítima não lhe cabe mais e sim sobrevivente, e o sobrevivente conta àquilo que sobreviveu.

Michaela em uma entrevista aponta que ao surgir o título ‘I May Destroy You’ na tela, a exclusão da palavra You é proposital para generalizar a intenção de destruição. Quem está dizendo que pode destruir? Seria o estuprador de Arabella, o de Michaela, Arabella para Michaela ou Michaela para nós? Ela não sabe. Eu também não. Mas assim como ela escreveu eu também o faço à alguém que precise da nossa destruição para encarar a própria e se reerguer conosco.

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Veronica Martz
veronicamartz

Registro o que me dá vontade quando me der vontade.