O robô, o videogame e a VR

Vinicius Cabral
8 min readJul 15, 2018
Humor português sendo acionado diante da eliminação do Brasil na Copa de 2018

O ano é 2018 e, pela primeira vez, eu ouço o termo "pós-futebol". Há pelo menos 2 anos o termo matriz (o já cansativo "pós-verdade"), começou a pipocar em textões, análises sobre o estado das coisas, e até em dicionário. Clichês à parte, faz sentido utilizar o prefixo. Afinal, fatos objetivos passaram a ter menos importância do que crenças pessoais e ondas de opiniões muitas vezes alimentadas por algoritmos de redes sociais.

Naufragados no excesso, não sabemos mais se escolhemos a informação que consumimos ou se escolhem por nós. Nunca tivemos tanto acesso, e nunca estivemos tão perdidos. Mas e aí? O que isso tem a ver com futebol?

O paradoxo.

Nunca vimos tanto, e com tantos detalhes, o que acontece nos jogos. São mais de 30 câmeras em campo, replays em câmera lenta, imagem aérea. No reality show das transmissões, a essência do esporte é posta em cheque. O quê é real e o que ainda pode ser simulado, em uma época em que até as polêmicas decisões dos árbitros podem ser revistas (e revertidas, se for o caso) imediatamente, no campo?

Sala do VAR (Video Assistant Referee)

Realidade ou simulação, futebol é futebol, né? Tem aquela mágica. Tem aquela mágica?

Desde a fatídica Tragédia do Sarriá, o jargão "futebol arte" sofre diante da valorização da performance e da eficiência. As novas gerações cresceram vendo este futebol mais "cru" e direto, onde até as "firulas" e dribles são condicionados a uma objetividade quase matemática. Como símbolo máximo disso, Cristiano Ronaldo surge como um paradigma. De um início de carreira extremamente criativo, onde demonstrava habilidade, desenvoltura e, claro, bastante vaidade, Cristiano precisou reverter a imagem de um narcisista habilidoso (uma fabricação midiática?). Submeter suas características mais, digamos, vistosas, a um parâmetro de eficiência jamais visto. Com o tempo, Cristiano evoluiu, atingindo marcas inacreditáveis.

A frequência e intensidade de seu jogo, bem como as estatísticas (média de gols, títulos, minutos em campo, títulos), são assustadoras. Há quem diga que Cristiano é sobre-humano. Um robô, operando em altíssimo nível de eficiência jogo após jogo, mantendo-se por mais de uma década no topo do futebol mundial e ganhando por 5 vezes a Bola de Ouro (prêmio de melhor jogador do mundo da FIFA).

Português também gera uma infinidade de memes

Outro que parece sobre-humano, e que também ganhou a Bola de Ouro por 5 vezes, é Lionel Messi. Apesar de também colecionar estatísticas impressionantes, Messi encanta por outros motivos: uma habilidade fora do comum, observada apenas nos maiores craques da história. Há quem diga que o argentino é o segundo maior jogador de todos os tempos, perdendo apenas para Pelé. Com a bola nos pés, parece um player de videogame, com a L1 (tecla de arranque) engatada. O controle de bola e os dribles curtos em velocidade parecem irreais, mas existem, e são mostrados pelo jogador há anos e anos consecutivos. Apesar de toda a eficiência, entretanto, Messi é contestado por aqueles que acreditam que, para se eternizar, o craque deveria ganhar uma Copa do Mundo. É visível, também, que por um comportamento extremamente tímido, retraído e quase anti-social, atribuído erroneamente à Síndrome de Asperger, Messi não mantém o excelente desempenho em alguns jogos decisivos. O que o prejudica em alguns comparativos e permite com que críticos questionem sua hegemonia.

Tá…mas e aquele futebol que a gente se acostumou a ver? E a mágica? E o drible que deixa o zagueiro no chão?

O jogo bonito virou campanha de publicidade de marca esportiva. Futebol agora é outra coisa. Que não é necessariamente feia, mas é outra coisa. E é assim, preso nessa crise de identidade, que o futebol brasileiro se encaixa nessa tríade, entre a eficiência, a gamefication e a realidade virtual. Entre CR7 e Messi, o terceiro jogador cotado há pelo menos 4 anos para ser eleito como melhor do mundo é brasileiro, e divide opiniões. Cênico e midiático, não dá pra discutir que Neymar é habilidoso. Como também não dá pra cravar exatamente o quanto o craque realmente joga, e o quanto será importante, a longo prazo, para as equipes que defende. O brasileiro ainda não conseguiu se desvencilhar do aparato marketeiro que o coloca entre os maiores, e muitas vezes parece esquecer que precisa, de alguma maneira, corresponder às expectativas criadas. Caso contrário, segue sendo uma projeção bem sucedida. Uma simulação digna de VR (virtual reality). Sujeito, inclusive, à adoração dos que exigem moralismo mas são os primeiros a contrariar as regras.

Desmoralizado após participação na copa de 2018, Neymar virou até fonte

Exigência demais? Talvez. Fato é que, melhor do mundo ou não, Neymar contabiliza a transação mais cara da história do futebol. O mínimo que se espera de um jogador com essa marca é uma eficiência, pelo menos, comparável à de grandes craques em atividade. Para os brasileiros a expectativa é inevitável. Quem não se lembra do que Ronaldinho Gaúcho fez no Barcelona, especialmente na temporada 05/06? Pelos dribles, jogadas inacreditáveis, gols e assistências deste período no clube catalão, o brasileiro poderia ser relacionado entre os maiores jogadores de todos os tempos. O que faltou então? Longevidade, sangue frio e cabeça para se manter no topo, em grandes clubes e na seleção? A Copa do Mundo de 2006 marcou o fracasso de uma geração representada pela habilidade extraordinária e plástica de Ronaldinho Gaúcho. Falhamos e o jogo bonito ficou para a campanha da Nike. Mais uma vez, o "futebol arte" é assassinado em função da eficiência e da performance. Lembram-se de Ronaldo e Adriano no ataque? Só habilidade não resolveria. Para dizer a verdade, nunca resolveu.

Sobre essa questão tão fundamental, que transcende o futebol em inúmeros sentidos, vale conferir o ótimo documentário da ESPN Brasil, "A reinvenção do futebol arte".

Dupla de ataque pejorativamente chamada de "Torres Gêmeas", "Ataque de peso", etc.

No "pós-futebol", nossa identidade está na berlinda. Tentamos, em vão, eleger os sucessores do místico futebol brasileiro, bonito e eficiente. Robinho, Pato, Ganso, Neymar, agora Philippe Coutinho. Buscamos os ídolos que nossos clubes, com suas categorias de base sucateadas por empresários, vendem muito cedo e não esperam amadurecer. Sem uma referência de "escola futebolística" a ser seguida, e sem uma tradição a ser mantida, esses ídolos se transformam em estrelas internacionais não pelo que fazem, mas pelo que podem fazer. Aos olhos do mundo e das dezenas de câmeras que tudo vêem, Neymar, por exemplo, sofre com a crítica, e terá que lidar com uma exigência pertinente e necessária.

Para evoluir como futebolista e se eternizar, precisa se destacar pelo que consegue fazer. Mas falta autocrítica e humildade. Para o desespero do astro, pode ser que a Bola de Ouro passe longe, e vá parar direto nas mãos do assustadoramente talentoso e eficiente Mbappé. Para Neymar e o futebol brasileiro, como um todo, entrarem nos trilhos, será necessária uma autocrítica aguçada, algo que certamente temos dificuldade em praticar.

O incoerente neste meme aí é que a coroa nunca esteve em Neymar

Copa do Mundo de 2018.

Testemunhamos momentos históricos na Copa da Rússia. Com o árbitro de vídeo, desnudaram-se os atacantes limitados, os zagueiros "grosseiros", os pênaltis marotos. Apesar de não eliminar os erros, afinal as decisões definitivas são humanas, o vídeo proporciona a revisão em tempo real de toda e qualquer situação no campo. E para qualquer espectador, dentro ou fora do estádio.

Demorou para o futebol adotar as revisões, assim como demorou para que o mundo começasse a questionar a unanimidade das carreiras futebolísticas estratosféricas projetadas a partir de imagens que nem sempre correspondem à realidade.

Mas não é só o vídeo que promete mudar o futebol. Em uma Copa atípica, as grandes e tradicionais potências sofreram. Itália e Holanda ficaram fora do torneio. Alemanha caiu na fase de grupos. Espanha, Brasil e Uruguai ficaram nas oitavas e quartas. Com exceção da bicampeã França, os tradicionais favoritos foram, um por um, fracassando, o que abriu espaço para excelentes times, de escolas pouco badaladas, chegarem às etapas decisivas do torneio. Não é que não exista mais bobo no futebol. O que não existe mais é ineditismo e surpresa. Praticamente todos os jogadores das seleções de uma copa atuam nos chamados "grandes centros". Além disso, qualquer comissão técnica que tenha acesso a wi-fi consegue, em poucos minutos, todas as informações necessárias sobre qualquer adversário.

Tivemos uma final inédita, improvável. A Croácia chegou com um time simples, sem grandes astros midiáticos, mas cheia de grandes jogadores. Comandada por um "operário", o simples e efetivo Modrić, a seleção Croata chegou à Rússia para jogar futebol, acima de tudo. Como desenvolve Valdano neste artigo sensacional, Modrić e a sua Croácia nos fazem repensar o futebol onde as aparências importam mais do que a substância.

O "motor" do time Croata, Modrić, sem comemorar muito a premiação de melhor jogador do torneio

O que é, mais ou menos, também o caso da campeã incontestável, França. Lotado de astros, de uma geração badaladíssima, o time de Deschamps, vindo de retumbantes fracassos recentes, decidiu se apoiar em uma estratégia simples e mortal (embora pouco "vistosa") para ganhar a Copa. Para abrir espaços no campo, no contexto de uma brutal e cada vez mais rápida compactação defensiva (com linhas separadas por 15 metros ou menos para "trancar" as portas), a França de 2018 abdica da posse de bola. Contrariando totalmente a regra dos dois últimos campeões mundiais. Este time deixou o adversário propor o jogo para reverter a pressão com toque de bola rápido, em contra ataques cirúrgicos.

Com apenas 34% de posse de bola no jogo final, a seleção francesa só não teve a bola. Teve frieza, poder de decisão e errou muito pouco, contando com o talento de Pogba, Griezmann e da revelação máxima, Kylian Mbappé, para resolver os jogos. Um time cheio de talentos sacrificados, defendem alguns, em função de um jogo pragmático e estritamente coletivo. Não há mais espaço para a dependência em craques e promessas messiânicas no futebol. E estão aí Modrić, eleito melhor jogador da copa, Hazard, Pogba, Perisić e outros para comprovar isso. Mais uma copa ganha pelo time mais coletivo e eficiente.

E para quem sente falta da beleza e da malandragem, adivinhem, ela mudou de endereço. Mbappé pareceu brincar em campo em alguns momentos, mostrando, quando necessário, frieza e serenidade impressionantes. Isso sem contar na velocidade abismal. Um símbolo do novo craque? Provavelmente.

Mbappé manda um "hi-five" ali pra uma das ativistas do Pussy Riot que invadiram o campo durante a final

Em uma época de mais dúvidas do que respostas, o futebol brasileiro sofre. Mas isso não é de hoje. Já deixou de ser novidade e só quem parece não enxergar isso com clareza é o próprio brasileiro, péssimo em se olhar no espelho e, como diz um grande amigo, "lamber suas feridas". Enquanto isso, o futebol segue, e está de parabéns. Finalmente, o esporte mais popular do mundo ingressa de verdade no século XXI.

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Vinicius Cabral

Músico e roteirista. Sócio da Cocriativa, barulhista no duo The Innernettes e na banda godofredo, e colaborador do podcast Silêncio no Estúdio.