Testamento de facebookcídio

Vinicius Cabral
4 min readApr 25, 2018

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Boa noite amigos, colegas e familiares que me acompanham nesta rede social.

Este é um testamento. Minha última publicação pessoal no Facebook.

Acabei de baixar todos os meus dados de quase 10 anos de atividade. Meros 250 megabytes que falam praticamente tudo a meu respeito. Há até uma pasta, chamada “Interesses de anúncios” que te mostra, quando você resolve salvar seus dados, o quanto de informação você deu, espontaneamente ou não, para esta perigosa empresa. Há ali centenas de “tags” que me definem, como vangloriam os analistas das empresas de Big Data, “melhor do que os meus melhores amigos”. Há na pasta interesses os quais nem eu mesmo reconhecia ter. Mas eles estão todos aí no mundo, com o pretexto de “melhorar minha experiência” com anúncios. Aqui cabe uma digressão, pra quem tiver paciência:

A essa altura do campeonato a maior parte de vocês já deve estar ciente do escândalo Facebook x Cambridge Analytica. Eu assisti às 5 horas de depoimento do Mark Zuckerberg no senado americano e nada ali é conclusivo: ninguém pode nos dizer o quanto nossos dados foram apropriados. Mas isso não é, nem de longe, o pior. Essa empresa já conseguiu aprimorar tanto uma inteligência artificial, que por anos e anos de dados acumulados, hoje é capaz de oferecer a qualquer outra empresa ou pessoa independente que queira criar um anúncio, uma quantidade boçal e HIPER segmentada de informações relevantes. Mas isso não serve só pra criar anúncios, embora este seja declaradamente o objetivo principal. Sob um governo autoritário por exemplo, é possível, utilizando o sofisticado recurso do “reconhecimento facial”, perseguir pessoas. A China já prende cidadão fazendo rasas análises baseadas nesta tecnologia.

“Que horror!”, dizem as pessoas ao meu redor. Pois é, mas isso continua não sendo o pior. Na minha opinião, o “julgamento” do algoritmo tem atuado decisivamente para o estado das coisas, no Brasil e no mundo. O acirramento de ânimos, o extremismo e a dificuldade de diálogo podem ter sido, pelo menos em boa parte, alimentados pela inteligência artificial. Afinal, ela faz, diária e continuamente, uma curadoria extremamente específica do que acha que queremos e/ou precisamos ver. Isso favorece o destaque de opiniões com as quais necessariamente concordamos, excluindo o contraditório e formando “bolhas” perigosíssimas. Essas bolhas, ao mesmo tempo em que empoderaram minorias historicamente excluídas, também deram voz a extremismos fascistas, de pessoas que, até então, tinham pelo menos algum constrangimento em externar suas opiniões tóxicas, violentas, agressivas e excludentes. As “bolhas” do Facebook se retroalimentam, constróem e segmentam o ódio, criando terreno para a exploração política mais vil e ardilosa.

É impossível hoje detectar o quanto essa rede contribuiu para os recentes horrores da política nacional e internacional. Acredito mesmo que só enxergaremos isso claramente daqui há algumas décadas. Mas as influências diretas e imediatas desse sistema já ficaram bem evidentes, ao menos em dois eventos políticos recentes: a eleição de Donald Trump e o Brexit. Há dezenas de outros exemplos e evidências de como o Big Data está sendo utilizado para hiper-segmentar conteúdos com o objetivo de, não só eleger candidatos, mas de criar ondas de tensão e manipular a opinião pública, sobretudo em países subdesenvolvidos. A mesma Cambridge Analytica que comprou os dados de mais de 50 milhões de pessoas para atuar na campanha de Donald Trump, já declarou ter trabalhado nas eleições no Quênia, no México, na Argentina e no Brasil*. A estratégia é muito simples, e nem requer o uso ilegal dos dados: só utilizando as ferramentas legítimas de segmentação de anúncios, é possível para qualquer campanha maliciosa (seja ela política ou não) direcionar conteúdos talhados perfeitamente para determinados segmentos. As Fake News são só a ponta do icerberg…o que temos visto são todo o tipo de estratégia baixa: boatos, informações fora de contexto, artigos e vídeos feitos com o objetivo descarado de estimular determinado comportamento ou opinião extremista, e por aí vai.

O mais triste disso tudo é que todos caímos, vez ou outra, nesse joguinho, apostando em nossas convicções políticas. Eu contei, nas eleições de 2014, pelo menos 5 artigos forjados, utilizando fotos fora de contexto viralizarem entre amigos meus, claramente de orientação política esquerdista. Este ano tentaram emplacar, capitaneados pelos “reis da sujeira” nesta plataforma (o MBL), uma suposta associação de Marielle Franco ao tráfico, utilizando para isto uma foto fora de contexto e uma declaração estapafúrdia de uma desembargadora, como se fosse uma notícia, quando na verdade era uma opinião desvairada. Está na hora de nos livramos da desinformação. Vivemos uma época de lutas, e de um colossal desejo progressista, que vem sendo cirurgicamente combatido pelo retrocesso de forças conservadoras que aprenderam a manipular a internet para acirrar os ânimos. O caos é construtivo para o poder, pois é dele que emana a necessidade induzida de uma “ordem”, judiciosa, julgadora, insaciável e cega. Não podemos deixar que nossa sociedade, tão complexa e cheia de nuances, seja catalogada e manipulada de forma tão vil e descarada, com o auxílio de uma plataforma criada para conectar as pessoas, aproximar os amigos e estimular a interação social. Há muitos anos eu digo que o Facebook acabou. Para mim, pelo menos hoje, ele acaba de vez.

Olhem bem ao redor. Avaliem sempre, com MUITA atenção todos os conteúdos que chegam até vocês. Questionem tudo!

Para ilustrar meu "facebookcídio", criei um painel com imagens pessoais compartilhadas na rede e planilhas retiradas do banco de dados do meu perfil
  • O canal inglês Channel 4 fez uma investigação maravilhosa desvendando a metodologia da Cambridge Analytica. Ao longo destes anos fui coletando muitos textos e reportagens sobre esses temas, e posso transmiti-los com muita boa vontade em outras redes sociais ou em contatos diretos. Seguem aqui alguns links básicos, mas importantes:

Anti big data (vídeo arte do meu projeto The Innernettes): https://vimeo.com/240521020

Reportagem Channel 4 (há uma playlist inteira no You Tube do canal com mais matérias hiper impactantes): https://youtu.be/mpbeOCKZFfQ

Ted Talk sucinto e objetivo sobre o assunto: https://youtu.be/iFTWM7HV2UI

Lembrem-se que essa é só a ponta do iceberg. Ao aprofundar no assunto, vai dando até medo. Mas vamos superar o medo e lutar por informação. Juntos!

Com carinho,

Vinicius

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Vinicius Cabral

Músico e roteirista. Sócio da Cocriativa, barulhista no duo The Innernettes e na banda godofredo, e colaborador do podcast Silêncio no Estúdio.