O excepcionalismo britânico

Victor Sá
3 min readNov 18, 2017

--

Os penhascos brancos de Dover vistos a partir da França.

muito venho considerando a necessidade de fazer uma publicação sobre as relações entre Reino Unido e União Europeia, cujos esboços acabei por escrever nos horários mais aleatórios possíveis. Os ângulos mais vulgares, debatidos constantemente na academia e nos media, infelizmente pecam por uma certa pobreza de conteúdo.

Por coincidência, o assunto foi revisto com o acontecimento da Palestra-Jantar Churchill em Cascais. Com base nisso, o prof. João Carlos Espada escreveu recentemente sobre a aparente contradição no pensamento do estadista inglês no que diz respeito ao processo de integração europeu — defensor de um quase-federalismo continental, mas cético quanto à incorporação do seu próprio país nele.

O palestrante Antoine Capet argumentou, com bastante nexo, que o conservador via no Reino Unido uma posição concêntrica entre Império, anglofonia e Europa. Ao contrário do que se supõe, a opinião de Churchill não é de todo incoerente; possui, na verdade, sólidos fundamentos históricos e políticos. O meu raciocínio central parte também da vocação de «império» que a Grã-Bretanha (ainda) adota sobre si, mas será expandido para outros aspetos que considero de relevância quase similar.

Em primeiro lugar, o lugar global das ilhas britânicas desde o processo de descolonização do Império Britânico. De certa forma, o mundo em que nós vivemos é um desenvolvimento direto daquele modelo civilizacional (globalização, língua, democracia representativa, desportos de origem comum, relativa paz e estabilidade), com os Estados Unidos da América a ocupar o papel de herdeiro legítimo da Terra da Rainha.

Mas, do ponto de vista britânico, a Commonwealth representa a continuidade natural daquela ordem. O Reino Unido e seus filhos (espalhados por todos os continentes do mundo) ostentam um grau de cooperação invejável. Nenhum império soube tão bem estreitar os laços com as suas ex-colónias, mantendo-se assim num ponto central. E isso inclui, naturalmente, a «Relação Especial» com os americanos. Daí nasce, em determinados círculos (sobretudo) ingleses, a visão de uma dicotomia entre ambas as empreitadas.

O segundo tópico diz respeito aos aspectos culturais que distinguem o Reino Unido da Europa Continental. A começar pela experiência histórica, em que projetos imperais — com base tanto na França quanto na Alemanha — causaram o confronto com uma nação que se via em «isolamento esplêndido».

Além disso, a sua organização política e legislativa sempre foi bastante peculiar. A common law, baseada na jurisprudência, valoriza a experiência prática de baixo para cima; na civil law, a fonte primária do direito é a legislação, numa abordagem top-down. Toda a concepção de sociedade passa a ser influenciada por um facto tão básico. Como pode, então, tal modelo ser conciliável com uma iniciativa continental e (porque não?) oposta?

Talvez pelos motivos supracitados o general Charles de Gaulle tenha feito a sua opção por rejeitar a adesão dos insistentes britânicos à (então) CEE. Em duas ocasiões, vale lembrar.

O terceiro refere-se ao papel prático que o Reino Unido desempenhou ao longo do seu tempo na União Europeia. A verdade é que o país sempre contou com uma série de concessões da parte de Bruxelas: não aderiu ao euro; não faz parte do Espaço Schengen que suprimiu as fronteiras terrestres na Europa; eximiu-se de acatar legislações relativas à justiça e assuntos internos previstas no Tratado de Lisboa; não assinou a Carta dos Direitos Fundamentais. Ademais, opôs-se ao Pacto Orçamental.

Em suma, teve as suas necessidades de cherry-picking devidamente respeitadas, de maneira que pôde optar pelas áreas que lhe convinham e conduzir o resto na velocidade que julgava adequada. Trata-se de um padrão que durou até o fim do relacionamento — David Cameron negociou com o bloco um estatuto especial para permanecer como Estado-Membro pouco antes do referendo.

Ora, não há testemunho melhor do que a realidade para demonstrar o quanto os britânicos sempre estiveram com «um pé fora». A sua saída — embora triste — nada mais é, portanto, do que algo inevitável.

Mais uma prova (como se fosse preciso!) do quanto Winston Churchill era um homem visionário.

--

--

Victor Sá

Uma leitura diferenciada das atualidades portuguesa e europeia.