Onde a ARENA vai mal, um time no nacional

Alexandre Sander, Bruno Amoreli, Rafael Delazari e Victor Góis

Victor Góis
17 min readNov 22, 2019

"Futebol e política não se misturam."

Você concorda com essa frase? Em tempos de polarização política brasileira, qualquer manifestação dentro do mundo esportivo é recebida com um debate caloroso.Torcedores de futebol estão entre os seres mais passionais da face da Terra. Disso não há duvida. A política, assim como o futebol, é um dos temas de mais passionalidade da sociedade brasileira. Assim, quando alguém ousa misturar os dois tópicos, o mundo vem abaixo. Isso aconteceu algumas vezes neste ano de 2019, como na reportagem de Gabriela Moreira no "O Globo", em que foi denunciado o envolvimento de dirigentes do Cruzeiro Esporte Clube com atividade ilícitas (quando a repórter foi atacada por parte da torcida), ou no caso em que o Flamengo deu uma camisa oficial para o deputado estadual (RJ) Rodrigo Amorim, aquele que quebrou a placa de rua com o nome de Marielle Franco.

Nesta reportagem escolhemos alguns episódios históricos em que os dois tópicos e estiveram intimamente ligados para mostrar que a relação entre futebol e política não é de hoje.

O Campeonato Brasileiro de Futebol, organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), nem sempre foi disputado no sistema de pontos corridos, com 20 clubes e 38 rodadas. Na verdade, o Brasileirão já chegou a ter 94 times em 1979 e, ao contrário da Copa João Havelange em 2000, isso não teve a ver com nenhuma “lambança” judicial que fez com que a CBF fosse obrigada a abrigar os clubes de todas as divisões no seu campeonato. Muito pelo contrário: a CBF, ao longo dos anos 70, progressivamente aumentou a quantidade de clubes que disputavam o que é atualmente conhecida como Série A do Campeonato Brasileiro a comando dos poderes políticos da Ditadura Militar no Brasil. O motivo? Apelo popular, que seria convertido em votos, direcionado especificamente para estados em que a popularidade da ARENA, o partido governista durante os anos de chumbo, ia mal.

Presidente Médice e jogadores da seleção brasileira

Como é que o mero ato de colocar mais times no Campeonato Nacional de Clubes pôde alavancar a popularidade do partido da ditadura no período de abertura política? Essa é uma análise mais profunda, mas fato é que o resultado existiu: A ARENA venceu 42 das 43 eleições para governador em 1974 e 1978. Dessa forma, a abertura política aconteceu da forma desejada pelos militares: “de forma lenta, gradual e segura”. O Brasileirão, portanto, foi uma das artimanhas usadas para que a imagem do governo se mantivesse em alta. Como se forma uma imagem política?

A construção de uma imagem, seja de um político, de um governo, de um regime, ou de um projeto de poder, foi frequentemente feita com base no apelo popular ao longo da história. Além de medidas governamentais que agradam diferentes camadas da sociedade, da criação de um material publicitário ou de uma imagem que crie identificação com o povo, esse apelo popular pode ser construído a partir da associação do poder e de suas entidades com manifestações culturais populares. Sendo o esporte talvez a mais popular dessas manifestações, e em destaque especialmente o futebol, é possível, então, aprofundar essa relação entre política e os desportos através de exemplos históricos. Depois que estabelecida essa relação, será possível, então, partir para o exemplo a ser dissecado e explorado nesta reportagem.

De que formas, então, é possível associar o esporte à política, de forma a criar apelo e apoio popular para ambos? A resposta não é simples, e cada momento na história tem suas peculiaridades. A política pode se apropriar do esporte para diversos fins, sejam esses justificáveis ou não (a depender, claro, da perspectiva de quem analisa).

A APROXIMAÇÃO ENTRE OS REGIMES DITATORIAIS E O ESPORTE

Hitler e as olimpíadas de 1936 em Berlim

O uso político das Olimpíadas, não só como propaganda, é quase tão antigo quanto os próprios jogos. Em 1931, ao escolher Berlim como a sede das Olimpíadas de 1936, o Comitê Olímpico Internacional (COI) não percebeu — ou não quis perceber — a nuvem marrom (cor do nazismo) que se aproximava no horizonte político da Alemanha. O fato é que, mesmo depois de Hitler chegar ao poder, em 1933, o COI não revisou sua decisão de 1931. Alguns países, principalmente os Estados Unidos, convocaram o boicote dos Jogos Olímpicos. Mas esses apelos fracassaram também devido à ação de funcionários como Averz Brundage, que mais tarde se tornaria presidente do COI.

Os nazistas aproveitaram o evento para propagandear suas ideias e não economizaram para isso. O orçamento dos jogos foi ampliado em 20 vezes. O resultado foi a construção do mais moderno complexo esportivo até então. O Reichssportfeld (hoje conhecido como Olympiapark Berlin) tinha como ponto central o Estádio Olímpico de Berlim, com capacidade para abrigar 100 mil pessoas.

Também em 1936, na Baviera, a parte católica da Alemanha, onde o nazismo era forte, se escolheu duas cidadezinhas para sediar as Olimpíadas de Inverno. Até os dias de hoje, as vizinhas Garmisch e Parterkichen continuam a ser bibelôs, onde tudo é bonitinho, arrumadinho e organizado. Em Berlim, o governante nazista da cidade, Julius Lippert, disse em discurso três dias antes da abertura dos Jogos para os representantes do Comitê Olímpico:

“Berlim saúda os guerreiros olímpicos do todo o mundo. Saúda ainda, nos senhores e com os senhores, os representantes de mais de 50 nações, com as quais toda a Alemanha deseja conviver como num reduto de paz no espírito da compreensão mútua.”

A realidade, no entanto, era outra. Por ordens de Hitler, foram retiradas dos arredores da cidade olímpica todas as referências antissemitas ou que pudessem manchar a imagem da Alemanha pacífica que ele pretendia apresentar aos visitantes. O pasquim nazista Der Stürmer, por exemplo, foi recolhido de todas as bancas de revistas nas proximidades do complexo olímpico.

Para os nazistas, os Jogos Olímpicos tiveram um sabor de vitória e sucesso. No final, a Alemanha arrebatou 38 medalhas de ouro, sendo a recordista de medalhas daquelas Olimpíadas. Apesar disso, quem se consagrou como a grande estrela daqueles jogos foi um atleta negro americano: Jesse Owens, que competiu quatro vezes e nas quatro levou a medalha de ouro. O racismo era evidente, mas o público alemão se entusiasmou com o grande atleta das Olimpíadas de Berlim. A escalação do atleta negro só foi possível, pois, para agradar Hitler, a delegação americana tirou da equipe dois corredores judeus que foram substituídos por Owens e outro corredor negro.

As novidades dos jogos de Berlim não se limitavam apenas aos mais modernos estádios, mas também à cobertura dos Jogos. Pela primeira vez, mais de 41 países puderam acompanhar as competições através do rádio. Houve também uma programação de 19 horas para uma mídia recente, a televisão.

Copa do Mundo de 1978 e Ditadura na Argentina

A Copa do Mundo é o maior evento esportivo do planeta, e sediar um evento deste porte, além de proporcionar o tal “legado da Copa” (hoje conhecido pelos brasileiros após o mundial de 2014), coloca em evidência turística o país-sede através da propaganda institucionalizada da organização do evento. Em 1978 a Argentina teve a chance de sediar a Copa do Mundo, e utilizou massivamente o evento para a capitalização do regime ditatorial recém-estabelecido em 1976. Mas a escolha da Argentina como sede foi num período que ainda não havia ditadura no país, sendo escolhida como sede após o final da Copa de 1966.

Videla e jogadores da Argentina

Depois do golpe no país, que destituiu o Peronismo e alçou ao poder um triunvirato militar, capitaneado pelo General Jorge Rafael Videla, o país correu o risco de não sediar a Copa devido à violência que o regime impunha ao país, em parte graças aos protestos organizados por outras nações contra sua realização no país portenho (a se destacar o COBA (Comitê de Boicote à Argentina), porém João Havelange, num gesto alheio aos protestos e como forma de agradecimento ao apoio da Argentina em sua eleição para presidente da FIFA, confirmou em 1977 a Argentina como país-sede da Copa de 1978, proferindo uma célebre frase: “O mundo terá a oportunidade de conhecer a verdadeira Argentina”.

Com o aval da FIFA para a realização da Copa, o regime de Videla capitalizou de forma pesada o evento como forma de demonstração de força do país e do próprio regime utilizando o slogan “Somos Direitos e Humanos”, além de sempre em uma proximidade, quase que indecorosa, junto da delegação argentina e aos jogadores. Esta proximidade explícita, com ponto culminante, na visita ao vestiário do Peru, antes de jogo da duas equipes, despertou forte desconfiança, que persiste até hoje, a respeito da lisura política e do grau de influência do General Videla em relação ao título conquistado pela Argentina.

Jorge Rafael Videla e jogadores da Argentina com a taça da Copa do Mundo

Há de se destacar que a população argentina, estava inicialmente reticente quanto ao apoio à sua seleção, por acreditar que indiretamente apoiaria o regime, porém com o passar da competição e as vitórias da seleção argentina, fizeram com que segundo as palavras de Joseph Blatter que trabalhava na organização do evento naquele período:

“Me lembro da minha primeira Copa do Mundo onde eu estava diretamente envolvido e posso dizer que fiquei feliz(sic) por ver a vitória da Argentina. Foi uma espécie de reconciliação entre o povo e o sistema, o sistema político, o militarismo que tinha na época”

O plano de Videla deu certo, pelo menos na Argentina, mesmo com as manifestações internacionais em relação ao regime, porém uma das consequências destes protestos, foi a exposição internacional, do movimento Mães de Maio, que se reuniam na Plaza de Mayo, para pleitear notícias de seus filhos, que desapareceram no período militarista do país.

Mandela e o Mundial de Rugby de 1995

A apropriação do esporte para uso político é necessariamente problemática? Como pode-se notar com os exemplos anteriores, ela é certamente perigosa num quadro geral, mas não faltam exemplos para provar que é possível que chefes-de-estado e esportistas se associem de forma positiva. O melhor exemplo disso, talvez, seja o de Nelson Mandela e François Pienaar.

A África do Sul foi o último país do mundo a manter um regime de segregação racial de forma explícita e sob viés da lei, aprovada em 1948. Ainda que sofresse inúmeras sanções internacionais, a África do Sul manteve o apartheid em vigor até o início dos anos 1990. No começo da década, sob negociações do fim do regime e com a garantia de eleições multirraciais, o país começou a ser readmitido nas comunidades internacionais e, por consequência, os comitês esportivos de todo o mundo abriram as portas para atletas sul-africanos.

Mandela entrega taça ao capitão François Pienaar

Em 1992, além de ser integrada ao rúgbi internacional, a África do Sul foi indicada para sediar o Mundial da modalidade em 1995. Com a Copa do Mundo de Rúgbi em curso e com a seleção do país fazendo ótima campanha, Nelson Mandela, eleito à presidência em 1994 após o fim do apartheid, resolveu abraçar o movimento como tentativa de emocionalmente unir brancos e negros em sua outrora segregada nação, que ainda tinha chagas do racismo expostas.

Mesmo sendo (até hoje) um esporte majoritariamente preterido pela população branca, o rúgbi sul-africano é talvez a maior força esportiva do país. Em outros esportes mais abraçados pela população negra, como o próprio futebol, a África do Sul não tem nem de longe o mesmo sucesso e importância internacional. Isso faz com que, em momentos como uma Copa do Mundo, toda a nação volte seus olhos para o evento.

Mandela viu ali uma oportunidade para unir a população branca e negra pela primeira vez após 50 anos de segregação institucionalizada. Acompanhando o evento vestido com jaqueta e boné da Seleção Sul-Africana, ele torceu, vibrou e se emocionou. Quando a os Springboks foram campeões numa emocionante final contra a Nova Zelândia, Mandela entregou a taça para o capitão François Pienaar frente a um Ellis Park Stadium lotado, majoritariamente, de sul-africanos brancos. Essa minoria populacional, que cobria a maioria do estádio e outrora o considerava um terrorista perigoso, gritou seu nome naquele dia.

O cumprimento entre presidente e capitão na entrega da taça, assim como a amizade mantida pelos dois até o falecimento de Mandela, foi um dos primeiros gestos em prol da união racial num país que ainda é amplamente afetado pelo racismo. Esse momento histórico foi eternizado no filme Invictus, dirigido por Clint Eastwood e protagonizado por Morgan Freeman e Matt Damon, gravado após o segundo título mundial de rúgbi conquistado pela África do Sul, em 2007. Hoje, os springboks são, junto dos All-blacks da Nova Zelândia, os maiores vencedores do torneio, com três títulos.

A ARENA E O FUTEBOL

Médici e a Copa de 1970

Durante a Copa do Mundo de 1970, realizada no México, e até mesmo antes, o presidente da República, General do Exército Emílio Garrastazu Médici, utilizou-se do futebol na tentativa de angariar popularidade.

Dava palpites a respeito de placares de jogos e na escalação da seleção. Deixou-se fotografar durante a Copa comemorando o título da seleção canarinho como se fosse um torcedor comum, sem qualquer cerimônia.

Alguns fatos marcam bastante essa relação do general cinco estrelas com o esporte bretão. Ao palpitar que o avante atleticano Dario “Peito de Aço” fosse convocado para a seleção, recebeu resposta atravessada do então técnico da seleção, João Saldanha: “Ele escala o ministério dele, que a seleção escalo eu”. Muito especula-se que a queda do treinador se deu em virtude de tal resposta (além, óbvio, de ser um histórico esquerdista). A nova comissão, chefiada pelo ex-jogador bicampeão mundial Zagallo, contava com elementos menos hostis ao regime (até simpáticos, tendo em vista que alguns deles eram ligados ao exército — Cláudio Coutinho, por exemplo). E Dario foi pra Copa, tornando-se campeão do mundo.

Médici ligava para os jogadores na concentração para incentivá-los, perguntava aos lesionados como eles estavam e como andava sua recuperação. O meia Roberto Rivellino, camisa 11 da seleção de 70, já contou em entrevista ao UOL ter recebido ligação do presidente Médici durante a Copa do México antes ou depois de todos os jogos da seleção em Guadalajara. Segundo o Reizinho do Parque, era “papo de bola”.

Além dos comentários frequentes sobre futebol, favoreceu o presidente o fato de que, pela primeira vez, a Copa do Mundo seria transmitida ao vivo pela televisão. Assim, todo o país poderia ver, simultaneamente, os jogos, gerando a ideia de unidade nacional, muito bem retratada na música considerada o tema da seleção naquela Copa: “Todos juntos, vamos/Pra frente, Brasil, Brasil/Salve a Seleção”.

Pelé ergue a taça Jules Rimet

Médici soube explorar muito bem o título do selecionado de futebol do Brasil, com efusiva recepção aos campeões em Brasília, tendo levantado a Taça Jules Rimet e posado ao lado de Pelé e dos demais campeões. O título foi uma grande dádiva ao presidente de plantão, pois passava a ideia de um Brasil forte e vencedor, o que, aliado ao milagre econômico dos anos 70, fez com que o regime militar vivesse um período de relativa estabilidade.

Na esteira do sucesso estrondoso da Copa do Mundo de 1970, foi organizado no ano seguinte, a 1ª edição do Campeonato Nacional de Clubes.

ONDE A ARENA VAI MAL, UM TIME NO NACIONAL

O Campeonato Nacional de Clubes (hoje conhecido como Campeonato Brasileiro) foi proposto em 1971 como uma oficialização do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, disputado entre 1967 e 1970. O “Robertão”, como era conhecido, não era oficialmente o “campeonato nacional” do Brasil, ainda que seus campeões se denominassem campeões brasileiros. Esse torneio, porém, surgiu de uma ampliação do antigo Torneio Rio-São Paulo, que foi encerrado em 1966, ampliado para aceitar clubes de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. A iniciativa de criar um campeonato de grande porte, que tivesse participantes dos principais estados do país, atraiu a atenção da CBD (atual CBF), que assumiu a organização em 1968 e rebatizou o campeonato de Taça de Prata. Naquele ano, houve também a inclusão de um participante da Bahia e um de Pernambuco, consolidando ainda mais a imagem de um campeonato nacional, e o formato foi mantido nos dois anos seguintes.

Para pôr um fim à polêmica da “oficialidade” da Taça de Prata, a CBD criou, então, o atual Campeonato Brasileiro, com 20 clubes na disputa em 1971. A própria criação envolveu diversas tramas políticas, para que todas as influências políticas se convertessem a favor do campeonato. A primeira influência foi a do próprio presidente da CBD naquela época, João Havelange, que criou o campeonato, já vislumbrando a concorrência das eleições de presidente da FIFA que aconteceria em 1974; outra influência foi por parte de federações estaduais de futebol que eram lideradas por militares: Ceará exigiu a participação de um clube no campeonato, enquanto Minas e Pernambuco demandaram a adição de mais uma equipe no torneio, tudo isso visando aumentar o poder político em seus respectivos estados; por último, as demais federações que pressionaram para que os Campeonatos Estaduais tivessem prioridade no calendário em detrimento do Campeonato Brasileiro, fazendo com que o Campeonato de 1971 tivesse duração de apenas 3 meses, enquanto os Estaduais naquele período duravam de 6 a 8 meses do calendário.

A inclusão de alguns, entretanto, gerou protesto de outros. Naquele mesmo ano, foi organizado, numa parceria entre Goiás Esporte Clube e o governo goiano, o Torneio de Integração Nacional, disputado por 16 equipes que ficaram de fora do campeonato da CBD, abrangendo 11 estados. Para evitar que esse campeonato paralelo se desenvolvesse e para conquistar popularidade em mais unidades federativas, o Campeonato de 1972 passou a ter seis equipes a mais, ampliando o número de participantes da Bahia para dois, além de incluir os estados de Alagoas, Amazonas, Pará, Rio Grande do Norte e Sergipe. A inclusão do Norte, através de Amazonas e Pará, foi minuciosa, simbolizando um “alcance” do governo federal à região.

Em 1973, o governo brasileiro começou a exercer influência ainda mais pesada sobre a CBD. Na iminência das eleições gerais, que aconteceriam em 1974, a influência do regime fez com que a segunda divisão fosse abolida (era um campeonato à parte, não existia rebaixamento nem acesso) e que o campeonato fosse inchado para 40 clubes, representando 20 estados, inclusive aqueles sem relevância futebolística nacional. Em 1974, a CBD conseguiu conter a pressão do aumento na quantidade de equipes já que, sendo ano de Copa do Mundo, a atenção estaria voltada para a Seleção Brasileira.

1974 foi um ano positivo para a democracia brasileira. O MDB foi amplamente vitorioso nas eleições para senador e recuperou um considerável número de cadeiras na Câmara Federal. Geisel foi empossado com a promessa da abertura política, mas o interesse militar de permanecer no poder ainda era nítido: a abertura seria feita de forma “lenta, gradual e segura”, e o partido governista tentaria recuperar sua força de todas as formas possíveis.

Em 1975, então, a expansão do campeonato voltou a acontecer, ainda que timidamente. Sendo o único estado mais “expressivo” de fora do Nacional, a Paraíba foi mais um ponto estratégico de recuperação da influência da ARENA e, portanto, ganhou seu primeiro clube no torneio. Goiás também recuperou parte do seu prestígio e passou a ter dois clubes na disputa.

O ano seguinte foi quando a expansão começou a ficar exorbitante. Buscando recuperar poder nos centros urbanos brasileiros (responsáveis pela ampla maioria dos votos do MDB), a ARENA, que ainda dominava as áreas rurais do país, promoveu mais uma expansão no Campeonato Nacional: doze clubes a mais do que no ano anterior, totalizando 54 equipes. Nesse momento o bordão “Onde a ARENA vai mal, um time no Nacional” já ganhava força.

Essas mudanças foram encabeçadas pelo recém-apontado presidente da CBD, Heleno Nunes, militar de alta patente, que assumia a entidade no lugar de João Havelange, recém-eleito presidente da FIFA. Nunes era conhecido por ser autoritário, e o inchaço desgovernado do Campeonato teve respaldo do legislativo brasileiro: a lei 6.251, aprovada em 1975, fortalecia a intervenção na CBD, restringia a participação dos clubes e engrandecia o poder de dirigentes das federações estaduais (não coincidentemente, esses eram em sua maioria políticos com currais eleitorais profundamente arraigados por todo o país).

Notava-se, portanto, que a abertura política acontecia a contragosto do Poder Executivo, que tentava fortalecer a todo custo as bases da ARENA Brasil afora. Nesse processo, quem pagava era o esporte e os clubes, que viam o “Brasileirão” fazer jus ao apelido que viria a receber muito tempo depois: em 1977, o campeonato passaria a ter 62 clubes, oito a mais que no ano anterior. A desorganização e a falta de estrutura foi tanta que o campeonato apenas começou em outubro, para acabar em março do ano seguinte.

O campeonato de 1978 começou apenas 20 dias depois do fim do anterior, ainda em março. Se alguém esperava que o campeonato fosse “enxugado” e disputado com menos equipes, cometeu um ledo engano: 12 equipes a mais, totalizando 74, disputaram o Nacional daquele ano. Pouco importou ser ano de Copa do Mundo na vizinha Argentina, a ARENA não quis cometer o mesmo erro de 1974 e não aumentar o número de times em ano de eleições gerais. Junto às medidas de Geisel para emular a tal abertura política, o inchaço do Nacional acabou dando certo: A ARENA venceu amplamente a corrida pelo Senado e ganhou todas as eleições para Governador exceto no recém-unificado Rio de Janeiro. Apesar do crescimento do MDB na Câmara, a ARENA manteve-se com a maioria dos deputados mais uma vez.

No primeiro ano de João Figueiredo na presidência do Brasil, a bolha do Nacional não parou de crescer, e em 1979 o campeonato atingiu o maior número de sua história (excetuando-se a Copa João Havelange em 2000, que precisou juntar todas as divisões nacionais em um campeonato só). 94 equipes de todo o Brasil disputaram o título naquele ano, que foi o último de existência da CBD. Por demanda da FIFA, as Federações ou Confederações de cada país precisaram separar as atividades de futebol das demais atividades esportivas. A CBF, portanto, foi fundada e, em seu primeiro ano de organização do Campeonato Brasileiro, sucumbiu aos pedidos dos clubes mais tradicionais e começou o processo de “esvaziamento” do campeonato. De 1980 a 1983, 44 clubes disputaram o título.

A entidade, ainda que reformulada, não se via ilesa de atos de corrupção e favorecimento indevido. Em 1984, por exemplo, houve a qualificação de clubes mais tradicionais, como Vasco da Gama e Grêmio, que não haviam conquistado colocações boas o suficiente nos campeonatos estaduais em detrimento de clubes que haviam conquistado o acesso de forma justa no ano anterior, como o Juventus. Em 1986, devido a diversos processos envolvendo o clubes brasileiros e a CBF no Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), o campeonato acabou tendo 80 clubes participantes e um regulamento que mudou mais de uma vez durante a competição.

Álbum de figurinhas da Placar (1987)

Fato é que, apesar da desorganização, o Campeonato Brasileiro e a CBF enfim tinham autonomia para tomar as próprias decisões e eventualmente cometer os próprios erros. Sem favorecimento a federações e políticos, e sem servir de cabo eleitoral, o Brasileirão passou a ser protagonizado por quem de fato deveriam ser os protagonistas: os clubes. Em 1987, contra o inchaço que sempre criticaram durante a década de 1970, os principais clubes do Brasil, através do Clube dos 13, criaram a Copa União, vencida pelo Flamengo, que hoje é reconhecido pela CBF como campeão brasileiro naquele ano.

Ainda que Figueiredo tenha encerrado a pressão acréscimo de clubes promovido por Geisel, ele teve certa influência em decisões da confederação, ajudando a manter o campeonato engessado em mais de quarenta equipes por todo o período em que foi presidente, perpetuando ainda certos traços do governo anterior e nutrindo a presença de equipes de vários cantos do Brasil na primeira divisão. Com o fim da ditadura militar em 1985 e o controle voltando para as mãos dos clubes, o campeonato nunca mais foi o mesmo e os exorbitantes números de times não foram mais tolerados. Desde a quebra promovida pelo Clube dos 13 em 1987, o Campeonato Brasileiro nunca mais teve mais de 32 equipes na primeira divisão, e desde 2006 segue com 20 clubes, assim como sua primeira edição oficial em 1971. Ainda que tenha havido “viradas de mesa” favorecendo majoritariamente equipes de maior poderio econômico, não pode-se negar que foi de grande avanço para o futebol brasileiro a saída da ARENA das decisões acerca do Campeonato Brasileiro.

Esporte e política estão historicamente ligados. No Brasil, o futebol foi, desde o início de sua popularização, utilizado por governos para fins políticos. No mundo, os grandes eventos esportivos são vistos por governos como forma de propaganda. Governos autoritários aproveitaram-se do potencial de interesse público pelo esporte para subverter o significado primordial do esporte, que é a comunhão entre iguais.

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Victor Góis

Pesquiso e produzo sobre cultura digital. Me interesso pela convergência entre comunicação, filosofia, arte, política e tecnologia.