A teologia de Batman v Superman

Victor Oliveira
8 min readSep 20, 2016

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O texto contém spoilers.

Batman v Superman estreou, gerou polémicas, separou o “mundo” e de forma inegável foi uma obra impactante para a indústria cinematográfica no ano de 2016. O filme apresentou um tom mais sério, com diálogos dramáticos e um desenvolvimento trágico, coisa que não é muito vista no cenário atual de filmes de heróis, mas que é algo que funciona muito bem no longa. Dentro desse clima é possível perceber que muito do conceito da trama e dos diálogos apresentados em Batman v Superman nos rementem a referencias que vão além dos quadrinhos: há um conceito teológico e filosófico muito grande no filme e nesse texto iremos “dissertar” um pouco sobre isso. Aliás, não é a primeira vez que Zack Snyder usa de simbologias e analogias em seus trabalhos: no próprio “Man of Steel”(Homem de Aço) há comparações claras da figura de Kal-El com a de Cristo. Não sei se Zack Synder é um homem religioso ou não, porém isso é irrelevante aqui, inclusive, vale ressaltar que o objetivo do texto é tratar de uma descrição analítica sobre conceitos interessantes que foram apresentados em Batman v Superman, independentemente de fé ou não fé.

Parando para analisar a própria construção dramática de todo o longa, fica cada vez mais claro que a figura do Superman é tida como a figura de um deus. O desenvolvimento político apresentado, a visão de Bruce em relação ao personagem e até mesmo as motivações do vilão Lex Luthor são baseadas no conceito de que existe algo que está acima de nós e devemos questioná-lo. Isso já incita um fator religioso interessante na nossa sociedade atual: a humanidade está cada vez mais questionando sua fé - o que não significa que a fé esteja acabando -, mas que de certa forma a nossa mentalidade hoje em dia nos permite colocar em cheque nossas convicções tradicionais sobre o divino, que por vezes nos leva em busca de construir nossas próprias convicções individuais sobre o divino, criando deuses à nossa imagem e semelhança.

O filme apresenta diversos personagens, porém, o plot principal é desenvolvido em cima de Batman, Superman e Lex Luthor. A Mulher Maravilha tem um espaço bem considerável no filme e é crucial para a trama, mas o conceito narrativo principal do longa foca bastante nesses três personagens citados e é exatamente disso que Snyder tira uma simbologia teológica para o filme. A forma como as visões, as motivações e as relações que acontecem de forma direta e indireta entre os três é desenvolvida, com preceitos ocultos - as vezes nem tanto - e uma mensagem de embate ideológico muito rica, funciona como um quebra cabeças onde cada persona possui uma peça que completa o conceito como um todo.

Primeiro nos atentemos à figura de Luthor, o vilão que acabou sendo amado por alguns e odiados por outros foi ponto chave na trama. Tudo, absolutamente tudo foi arquitetado por ele. O seu desejo de subjugar a figura de Deus é claramente desenvolvido ao longo do filme: Lex é um jovem traumatizado pelo seu passado, que deposita o seu ódio na figura de um deus que supostamente deveria ter o ajudado. Ao ser confrontado pela imagem de Superman, Lex vê nele a figura encarnada do divino e usa de seus artifícios para provar um conceito muito forte em sua mente; o de que Deus falha. Isso é reforçado em determinado diálogo onde Lex faz referência ao paradoxo de Epicuro e ao problema da Teodiceia reformulado pelo filósofo e teólogo Gottfried Leibniz: um dilema lógico sobre a existência do mal e a responsabilidade divina em relação a isso. A lógica da Teodiceia trabalha com determinadas características encontradas no deus judaico cristão: onipotência, onisciência e onibenevolência. Dentro do paradoxo é levado em conta que tais características levam a um caso verdadeiro aos pares, excludentes de uma terceira. Ou seja, se duas estiverem corretas, uma terceira não pode se sustentar. O interessante é que Epicuro, mesmo sendo o repercusor do problema, não era ateu, apenas negava a imagem de um deus que se preocupava com os assuntos humanos, o que de certa forma encaixa no contexto de Lex, afinal, Kal-El não é um mito, ele está diante de seus olhos, a diferença é que Lex duvida de sua “perfeição”.

Em segundo temos a visão do Batman: Bruce Wayne enxerga em Kal-El um ser que possui a capacidade para acabar com a terra e que por isso precisa ser combatido. Há um ceticismo enorme por traz de seus dogmas, Bruce não enxerga bondade no homem e acredita que tudo deve ser temido. É a partir do personagem que a simbologia cristã é incluída no filme, Bruce Wayne representa nada mais do que a humanidade diante a figura de Cristo: o povo que clamou “crucifica-o”; os soldados que o torturaram; o Estado que o condenou. Outro ponto interessante em relação ao Homem Morcego é a arma da qual ele utiliza para enfrentar o Homem de Aço, uma lança feita de Kriptonita - aqui podemos fazer um paralelo também interessante acerca da lança, pois na tradição católica é entendido que Cristo morreu fatalmente por um golpe específico de um lança específica, conhecida hoje como a Lança do Destino. O Cavaleiro das Trevas é a imagem do homem pecador, cego, manipulado pelos seus próprios dogmas, que não enxerga a redenção. E isso é retratado de forma bela ao longo do desenvolvimento do personagem, inclusive na forma como as convicções do próprio sobre a humanidade mudam. Chega a ser poético.

Por fim, temos a imagem do Superman, que como já colocado, representa de forma clara a figura do Cristo. Inclusive, não é a primeira vez que a figura do herói é associada a imagem de Yeshua, a própria origem do nome Kal-El remete a uma expressão em hebraico que significa “Voz de Deus”; o personagem, criado por judeus, foi inspirado na figura de Sansão, importante personagem bíblico; a comparação com a fugura de Cristo foi sendo adicionada ao longo da história do herói, muito provavelmente influenciado pela forte cultura protestante americana; as semelhanças e comparações entre ambos fizeram com que ao longo dos anos Kal-El assumisse ainda mais esse conceito, tendo referencias em quadrinhos e etc.

No filme, Clark é apresentado cheio de conflitos, suas convicções são abaladas e tudo o que ele deseja é poder utilizar suas habilidades para ajudar a humanidade, mas as dúvidas em torno do quanto sua ajuda é de fato necessária, surgem. O ponto crucial da trama é no momento da batalha final, onde Kal-El se entrega ao seu adversário, sacrificando a sua vida com o objetivo de salvar a humanidade. Esse é o maior conceito dentro da teologia cristã: o deus que se entrega em sacrifício para salvar uma humanidade que o julga e o condena. Essa associação fica ainda mais clara em determinada cena, logo após a morte do Superman, onde Batman pega o corpo de Kal-El e entrega nos braços da Mulher Maravilha e Lois Lane, ato que nos remete ao momento em que Cristo é retirado da cruz. Inclusive, a forma como Snyder conduz a cena, faz referência a diversas obras artísticas sobre o sacrifício de Cristo: “O Sepultamento de Cristo”, de Michelangelo; “A Deposição da Cruz”, de Peter Paul Rubens, entre outros.

Ainda sobre quadros, é interessante ressaltar uma outra referência bastante presente no filme: o quadro do pai de Lex. A imagem aparece em alguns momentos do longa e retrata uma batalha entre anjos e demônios, colocando a figura demoníaca na sua parte inferior, sendo usada de referência para Lex em um determinado diálogo onde ele ressalta certa ironia no contexto da pintura:

“Os demônios não vêm do inferno abaixo de nós, eles vêm dos céus”.

A frase que parece “desconexa” para alguns, traz referências sobre possíveis arcos de futuros longas do universo da DC, mas, além disso, possui uma certa consistência teológica muito interessante: o próprio conceito de demônios dentro da perspectiva bíblica é discutível e complexo, o objetivo da figura da “Serpente” e do mal personificado como um todo, é motivo de discussões inacabáveis que concentram fatores que vão desde da divergência religiosa à hermenêutica textual, mas em geral é bem aceito dentro da cosmovisão cristã que a figura de “Satã” surge da rebelião que ocorreu nos céus vista de forma clara no livro de Apocalipse no capítulo 12, versos 7 ao 9:

“E houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos; Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele.”

O interessante disso tudo é que a frase de Lex faz todo um sentido dentro de uma perspectiva literal, pois, de fato, os demônios não vêm do inferno, eles vêm do céus.

É muito bonita a forma como todo esse background é posto em Batman v Superman. O filme pode ter sido controverso a ponto de dividir opiniões, mas é inegável que há consistência e grandeza no longa. Toda o conceito que nos remete a uma simbologia tão presente e forte, deixa o tom épico de Batman v Superman ainda mais interessante. Sem contar que o filme não para por aí, há outras referências mitológicas que inclusive dão um contraste mais adverso em relação a teologia cristã presente na trama. Porém, aqui busquei sintetizar o texto em cima dos conceitos simbólicos mais presentes no filme, pois, se fossemos, de fato, parar para analisar cada detalhe do longa, muito mais coisas iriam ser evidenciadas, muito mais coisas poderiam ser discutidas, afinal, se tem elementos que Batman v Superman traz com excelência, são referências.

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Victor Oliveira

Mestre em Estudos Estratégicos (INEST) Bacharel em Relações Internacionais (UCAM). Editor, Ensaísta e Pesquisador.