A Ciência é Racializada?

Ramon Vilarino
10 min readJun 29, 2020

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[Esse texto foi escrito para minha participação no painel “A ciência é Racializada?”, promovido pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) no dia 24 de junho de 2020. Além de mim, foram painelistas as professoras Sonia Guimarães (ITA), Denise R. Gonçalves (UFRJ) e Alan Brito (UFRGS). O vídeo do painel pode ser acessado aqui]

Boa tarde!

Eu queria começar agradecendo a oportunidade de pensar e falar ao lado de pessoas tão especiais. É estranho e novo pra mim (como eu imagino que talvez seja para alguns de vocês) me ver falando ao lado das pessoas que me acompanham nessa mesa, eu estando no ponto que eu estou da minha carreira, enquanto ocupo o mercado de trabalho descobrindo o uso que quero fazer do doutorado que pretendo começar.

Apesar do estranhamento, a decisão de aceitar o convite da Catarina vem num momento de consolidação de alguns aspectos da minha construção do que eu entendo ser a comunidade científica — construção da qual espero poder compartilhar um pouco com vocês hoje. Nesse momento novo, eu também me enxergo participante legítimo da comunidade científica, como construtor de ciência por mais que eu esteja ainda dando meus primeiros passos.

Nessa concepção, também não apenas me enxergo co-responsável pelos caminhos que essa instituição toma, mas como sujeito com possibilidades de contribuir para o debate e para a construção do futuro da ciência a partir do que eu tenho experimentado até agora. Sendo assim, eu enxergo o próprio ato de aceitar estar aqui hoje como parte dessa construção de um futuro para essa comunidade: eu quero uma ciência mais aberta, mais coletiva, ainda mais consciente das próprias limitações e possibilidades, ainda mais horizontal na troca das ideias e, principalmente, mais comunitária.

Vale também ressaltar que, depois de muito perguntar por aí, para mim ciência só pode ser definida pelo que os cientistas estão fazendo. Tentem uma hora, se vocês puderem, perguntar para vários cientistas o que eles acham que ciência é. Na minha experiência, você vai receber muitas respostas diferentes, quase sempre relacionadas aos interesses, sentimentos e preocupações que levaram as pessoas a fazerem ciência. No paradigma em que quero falar, a ciência só existe como instituição e comunidade — em oposição a qualquer definição abstrata que se refira a uma busca etérea por conhecimento. Para mim o que faz sentido pensar é como essa comunidade se constrói e se auto-regula para a produção de conhecimento confiável. Dito isso, pergunto: A ciência é racializada?

Bom, a própria existência desse painel, com essa composição, pelo significado das suas presenças e ausências, nesse momento, me pareceria ser o suficiente para concluir que sim, a ciência é racializada. Estamos aqui, membros da comunidade científica, refletindo sobre as nossas experiências dentro dessa comunidade, nos juntando a vozes de vários lugares do mundo que, nesses tempos terríveis, também se propõem a publicizar as constatações de que, sim, como tudo na vida, toda nossa experiência dentro desse meio é atravessada pela raça.

Me parece que a única opção para sustentar a cisão de que, não, a ciência não é racializada seja considerar que todas essas pessoas de dentro e de fora da ciência estão sofrendo de um devaneio coletivo e que, não, não faz sentido considerar essas vozes. Como, porém, essa é a comunidade na qual eu ouvi de um certo professor muito relevante em sua própria área de pesquisa e também muito importante na minha formação que ele só não dava aula no dia 20 de novembro porque ele foi informado de que haveria consequências legais em violar um feriado municipal, a argumentação faz-se necessária.

Tipicamente, as pessoas que defendem esse tipo de posicionamento, e que muito provavelmente se incomodariam com a pergunta que define esse painel, são também aquelas que defendem uma ideia infelizmente bastante popular de uma suposta neutralidade da ciência. Então, eu quero me propor a responder a pergunta sobre a racialização ou não da ciência em oposição a essa noção de neutralidade.

Entretanto, quero ressaltar que o objetivo da minha fala não é adular ou convencer pessoas que sustentam essas posições à revelia dos constantes alertas e denúncias das pessoas negras. Como eu aprendi recentemente com a Grada Kilomba no livro “Memórias da Plantação”, o processo de romper com esse posicionamento é um processo do sujeito romper com vários mecanismos de proteção do próprio ego, que por sua vez se sustentam numa subversão da lógica. Assim, a essas pessoas eu desejo um processo sadio de transformação e reconciliação com a realidade (ao invés de um processo traumático), mas esse espaço eu quero usar para construir com aqueles de nós interessados em superar o racismo, compartilhando as coisas que eu vejo daqui de onde eu vejo.

A busca que eu comentei pelo uso que eu quero fazer do meu doutorado vem convergindo para contribuir e pensar um problema que me bate como urgência: o problema das interconexões entre a tecnologia e a sociedade, principalmente pensando nas potências, limitações, dilemas e contradições das ditas Inteligências Artificiais. Venho buscando me juntar às pessoas que tentam transformar todos os âmbitos dessa área, querendo construir conceitos, fundamentos, técnicas e matemática que levem essas interconexões para dentro do processo de construção e desenvolvimento dessas tecnologias. As aventuras nesta nova área, não curiosamente, tem me dado novos mecanismos e conceitos para pensar a ciência como um todo e escolhi compartilhar nesse espaço uma reflexão que um desses conceitos me engatilhou.

Dentre as muitas coisas maravilhosas que ela faz no livro “Race After Technology” (“Raça depois da tecnologia” em tradução livre, já que não ainda há tradução em português), a professora de estudos afro-americanos da universidade de Princeton Ruha Benjamin nos convida a pensar o próprio conceito de raça como uma tecnologia. Tecnologia desenhada e cultivada com o objetivo de possibilitar e facilitar o controle social. Até agora, o meu jeito favorito de apresentar essa ideia é a partir de uma reflexão colocada pela Ruha logo depois do prefácio. Ela escreve algo como:

“Dar nome para uma criança é um negócio sério. E se você não é branco nos Estados Unidos, há muito mais do que preferência pessoal em jogo. Quando meu filho mais novo nasceu, eu queria dar a ele um nome árabe para refletir parte da nossa herança familiar. Mas isso foi logo depois do 11 de setembro, então é claro que eu hesitei. Eu já sabia que ele seria estereotipado sendo um jovem e depois um adulto negro, então, como a maioria das mães negras, eu já havia começado a mentalmente lutar contra aqueles que tentariam ferir meu filho, mesmo antes de ele nascer. Será que eu realmente gostaria de adicionar mais um “round” a essa luta? Bem, a verdade é que eu também sou bastante teimosa. Se você me disser que eu não posso fazer algo, eu tomo isso como um desafio. Então eu dei ele um primeiro e um segundo nome árabe [um nome composto] e disse no anúncio do seu nascimento: “Isso garante que ele estará marcado toda vez que ele tentar voar”.

Nessa passagem que me emociona sempre que eu lembro dela, a Ruha nos convida a pensar que se nomes são códigos sociais que nós usamos todos dias para fazer avaliações sobre as pessoas, eles não são neutros mas racializados, genderizados e com conteúdo de classe e de maneiras até bem previsíveis. Quem aqui nunca viu aquelas listas de nomes “engraçados”, que tipicamente fazem graça de nomes típicos das periferias ou inventados nelas? Como se todos os nomes não fossem, em algum momento, inventados! A questão sendo: quem a gente deixa inventar os nomes? Ela ainda aponta para um documentário que mostra pais consultando “coaches” de nome, pensando a melhor estratégia para dar nomes aos filhos para que eles não tenham vantagem competitiva no seu desenvolvimento: o nome como marca. Isso me lembrou de um amigo meu que me contou que os pais deles pensaram num nome fácil de ser falado em qualquer língua, projetando para ele, no nascimento, possibilidades de uma carreira internacional.

Mas o interessante para discussão que eu quero trazer aqui é a reação dos alunos brancos que a Ruha descreve sempre que ela propõe que seus alunos em cursos de graduação iniciem o semestre pensando sobre os próprios nomes. Ela conta que muitos alunos têm histórias interessantes para contar, mas comenta que frequentemente alunos brancos reagem ao exercício dizendo coisas como “Eu só tenho um nome normal”, “Eu só recebi o nome do meu avô” ou “Eu não tenho nenhuma história interessante pra contar do meu nome, professora”. O que suscita as perguntas: o que significa a gente considerar os Gabrieis, Rafaeis, Giovannas, Luisas, Enzos e Valentinas e outros nomes comuns entre a nossa branquitude de classe média nomes normais? Quem decidiu que esses seriam os nomes neutros, que não contam história, que permitem que essas pessoas se apresentem sem que nenhum preconceito surja engendrado a esses nomes? Quem decidiu que os nomes brancos seriam invisíveis e os Richarlissons, Severinos, Josilenes e Jaciaras seriam os marcados? Essa é uma característica central do Racismo enquanto tecnologia, a Ruha aponta: definir a branquitude como centro de normalidade contra qual tudo deve ser medido e comparado. Ela ainda conecta essa invisibilidade dos nomes tipicamente brancos a outra característica essencial da tecnologia racial racista:

“Invisibilidade, em relação à branquitude, oferece imunidade. Não possuir nenhuma marca imposta pela raça te permite gozar dos benefícios mas escapar da responsabilidade pelo seu papel num sistema injusto.”

O que de maneira muito direta me leva a inverter a pergunta sobre a ausência das pessoas negras na academia para os professores brancos que insistem negar a racialização da ciência. O que todos esses professores brancos dos institutos de física aqui do Brasil estariam fazendo se o corpo docente fosse composto por mais de 50% de pessoas negras como é o total da população brasileira? Qual a explicação deles pra isso? Me parece difícil explicar esse fenômeno sem pensar na tecnologia racial brasileira atuando de forma muito impactante e direta para reservar vagas e espaços para essas pessoas, para as mesmas famílias, por gerações. Tudo enquanto a polícia mata diária e diuturnamente nas periferias onde, outrossim, a esmagadora maioria das pessoas é negra.

O que leva imediatamente a questionar: existe outra função para esse insistente discurso de neutralidade da ciência que NÃO seja alimentar a subversão lógica que insiste em negar os efeitos do racismo na PRODUÇÃO da comunidade científica? Há outra função para esse posicionamento que NÃO seja a de proteger os egos de acadêmicos que acreditam que, quase que exclusivamente por que são capazes, terem direito de ocupar a posição de privilégio como pensadores? Certamente, sim, há muitas outras funções, mas me parece bastante ingênuo pensar que elas sejam benéficas para as pessoas dispostas a construir um mundo mais igualitário.

De onde eu vejo, uma dessas funções é sustentar um modelo de formação frequentemente abusivo, no qual pode-se abdicar de pensar de forma contextual sobre o bem-estar e o desenvolvimento dos que ingressam na comunidade científica. Um modelo que permite tratar alunos e aspirantes a pesquisadores como eu não como parte construtora do que chamamos de ciência, mas como matéria prima, a ser explorada, minerada e peneirada numa inversão perversa que frequentemente coloca toda e qualquer responsabilidade pela formação de novos cientistas sobre os próprios novos cientistas.

Esse discurso de neutralidade da ciência, tal qual a invisibilidade da branquitude, permite a omissão diante de um modelo de academia falido, que vê a minha geração confusa e sem perspectiva do que fazer depois dos doutorados enquanto as vagas para novos professores nas universidades no mundo todo são cada vez mais escassas, sem mencionar todas as aflições específicas da ciência brasileira. Formar doutorandos e com a ajuda deles fazer as publicações que te promovem na carreira… Após formados, esses doutores devem, por sua vez, se empregar e formar ainda mais doutorandos na mesma lógica, que devem formar ainda mais doutorandos, que… Tudo isso ao mesmo tempo que a responsabilidade de pensar as condições de vida das pessoas que se propõem a integrar essa comunidade fica concentrada nos indivíduos! Isso me parece mais com um esquema de pirâmide do que uma forma de uma comunidade se organizar para produzir conhecimento confiável de forma sustentável.

A conciliação com a razão para sustentar esse discurso abusivo é feita a partir do famoso “Tem que fazer ciência quem tem amor!”. Eu, particularmente, ouvi que deveria fazer Relatividade Geral apenas se essa fosse minha única possibilidade de ser feliz porque era assim mesmo: os empregos eram difíceis, o trabalho era solitário e difícil de compartilhar com as outras pessoas na sua vida… E quando o amor à ciência não é colocado assim de maneira impositiva, ele aparece como lamento que justifica a inação diante de um problema sistêmico. Eu pergunto: que lugar é esse do qual se sustenta a posição romântica de que ser cientista é resultado de uma combinação de amor, brilhantismo, esforço e, por consequência, merecimento? Que problemas já estão resolvidos na vida de alguém quando decidir se vai ou não sacrificar anos de dedicação e esforço mal remunerados da sua vida se resume apenas a se perguntar o que se ama?

Eu não sei vocês, mas poder ajudar a minha mãe — depois de anos de esforço e dedicação na construção de uma vida nada menos que incrível — a finalmente viver a vida com algumas das possibilidades que a classe média branca brasileira toma por garantido nunca deixará de estar entre as minhas principais preocupações. Portanto, Relatividade Geral nunca existirá como a única coisa que me faria feliz, não importa o quanto eu me divertia fazendo isso.

Durante toda a graduação, a minha preocupação constante era como garantir os recursos necessários para continuar estudando e só muito recentemente resolvi o problema de conseguir a quantidade obscena de dinheiro necessário para me candidatar a um doutorado no exterior. Portanto, o ponto de partida dessas pessoas para pensar o fazer e a carreira científica é simplesmente o de pessoas iguais a elas, com preocupações iguais as delas, com contextos iguais aos dela, o que mostra que para essas pessoas a ciência não é apenas neutra, mas uniforme.

Dito tudo isso, eu estou disposto a conceder que a ciência seja, de fato, neutra. Mas é neutra naquele mesmo sentido em que os nomes normais são normais e em que a branquitude é invisível, numa permeabilidade perversa do racismo que estrutura toda a sociedade, no qual a definição de neutralidade é a própria branquitude. Eu não quero, não defendo nem construo uma ciência neutra porque a neutralidade é racializada. E referenciando um rap que minha querida amiga Eloize me apresentou um dia desses: brancos, fiquem tranquilos, nós vamos empretecer sua ciência e vai ser esse o caminho pra encontrarmos soluções para as várias crises que a ciência atravessa.

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