Alguns impactos da recessão na internet e na disponibilidade da informação

Vinícius Fernandes
6 min readJan 14, 2021

--

Os preços dos alimentos já aumentaram o suficiente para trazer os sentimentos sérios do agora.
Uma outra dimensão interessante e importante de se olhar é a internet: para a imensa maioria das pessoas, está ficando cada vez mais difícil acessar a informação — não estou falando de bolhas controladas como as redes sociais, estou falando, por exemplo, de baixar filmes pirateados, ou artigos científicos, ou músicas, ou qualquer coisa que esteja um pouco mais à margem das grandes empresas do vale do silício (facebook, google, etc).

A equação não é tão difícil de entender: antes poucas pessoas tinham acesso à internet, hoje existe mais acesso — por mais que tenham existido as quedas — e, com isso, existe uma maior concorrência para acessar o mesmo conteúdo. Esse conteúdo não fica magicamente disponível para todos: são necessários investimentos em servidores e materiais de redes para garantir que o acesso seja disponível.

A pirataria não depende de servidores, depende de pessoas dispersas no mundo que estejam alimentando (fazendo upload) para que outras pessoas possam baixar (download). A pirataria de filmes é um caso bem nítido pra explicar isso: quem já baixou um filme “torrent” vê que na hora de baixar, o site que disponibiliza muitas vezes informa quantas pessoas estão “alimentando” o filme e quantas estão “baixando” o filme — assim, as melhores opções geralmente serão aquelas nas quais o número de pessoas que estão alimentando é muito maior que o número de pessoas que baixa o filme.

A evolução dos aparelhos de mídia esteve e ainda está muito colada à evolução das empresas que são responsáveis pela centralização cada vez maior da informação da internet — seja no contexto de redes sociais específicas, seja de aplicativos de música/filmes pagos, ou até mesmo de conglomerados acadêmicos (que, como toda iniciativa privada de educação, tende a compartimentalizar e a privatizar com altos custos os saberes). Existem alternativas que tentam fugir dessa trilha, como as iniciativas Tor, i2p e outras formas de construção de redes que buscam se colocar ao redor de outras instituições e grupos que não sejam tão próximos dos grandes conglomerados computacionais quanto as formas mais conhecidas — apesar de também haverem limitações.

O resultado será infeliz: se não houver um investimento massivo em iniciativas públicas de garantia de acesso à informação — garantindo um acesso plural — em breve a arte e o conhecimento podem estar exponencialmente menos disponíveis à maioria das pessoas — e inclusive às elites, diga-se de passagem. Existem iniciativas nojentas como as que o intercept já reportou inúmeras vezes — as que bolsonaro, abin e cia estão construindo para criar desde agora uma base offline de dados firme e conectada com os dispositivos de controle dispersos no meio da população — smartphones, câmeras de trânsito, etc. É necessário que existam também iniciativas contrárias e que se comece (pra ontem!) pelo menos a centralizar em servidores e em outras ferramentas de armazenamento o que gostaremos de guardar para o futuro.

É fato que a ciência da computação avança rumo aos computadores quânticos, mas outro fato é que com isso também se cresce a capacidade de controle da informação. Pra fazer uma comparação rápida: imagine tentar assistir a um filme em HD com uma internet discada (aquela do começo da década* (do começo do milênio) que fazia uns barulhinhos toda vez para começar a funcionar). E para complicar, existem novas iniciativas tentando bater de frente com grupos que historicamente conseguiram disponibilizar mais arte e ciência para a população — como os recentes ataque do governo indiano e do twitter ao sci-hub e à livraria genesis (ambos são sites que conseguiram piratear uma quantidade gigante de artigos e produções científicas que só eram disponibilizadas para pessoas que tinham cargos privilegiados dentro de universidades e instituições específicas).

Se hoje podemos facilmente acessar filmes em resolução ultraHD e artigos científicos que antes só eram disponíveis para quem se graduasse em faculdades de estribados no exterior, amanhã talvez teremos apenas vídeos de goku derrotando freeza na qualidade 144p do youtube (como era no tempo da internet discada, fora o orkut e algumas outras besteiras limitadas que tínhamos lá). Isso é sério, é necessário investir em inteligência artificial para o processamento, download e armazenamento preciso dos dados que desejaremos disponibilizar para o futuro — o que já é difícil, visto que uma quantidade gigantesca do que está disponível diminui a cada segundo que passa. Difícil será também garantir a dispersão, no futuro, do que guardaremos agora, pois dependendo do tipo de dispersão que será feita poderão haver tentativas de impedi-las.

Existe ponta de lança contra isso: Bolívia e Peru, aqui na região, se mostraram extremamente eficientes no trato militar e inteligente da internet e da informação— não é à toa as novidades vindas da política da região (quem acompanhou o subterrâneo dos conflitos sempre soube da imensa inteligência dos hackers dos andes). Em África também existem novas iniciativas. O investimento na área, porém (analisando globalmente) está quase que restrito aos conglomerados — como o vale do silício - e também aos militares. Existe também o investimento na pesquisa (como o investimento que faculdades de ciência e engenharia da computação recebem), porém esse investimento de pesquisa é extremamente menor do que os investimentos que recebem os conglomerados privados e militares (sejam milícias privadas ou os militares de estados) e, pelo próprio caráter dos grupos que geralmente chefiam as faculdades de computação, uma parte gigante — e, em inúmeros casos, essa parte é a parte maior— desse investimento acaba sendo redirecionado para o setor privado (pra explicar bem: os professores e grupos que recebem os investimentos muitas vezes trabalham para grupos e empresas privadas como a Amazon, fazendo com que tanto os avanços como o material garantido com os investimentos nas pesquisas acabem funcionando a favor de interesses privados ou militares).

A saída é, ao meu ver, antes de tudo: boicotar as grandes mídias — o que ainda é difícil, mas se tornará cada vez mais fácil com novas iniciativas (des)centralizadas que busquem construir novos sistemas de redes com ampla capacidade de análise e armazenamento de dados. Isso deve partir principalmente de uma pressão contra as instituições públicas/privadas, e pode também ser fortificado com iniciativas responsáveis realizadas por instituições e movimentos sociais respeitados. Fica mais fácil progredir assim, privilegiando o armazenamento de informação sensível e valiosa (no lugar de garantir inúmeros terabites para armazenamento de selfies e vídeos praticamente inúteis).

Por mais que já estejamos nos empenhando para lutar contra a desinformação e para garantir o pleno acesso, meu chute é que existe uma probabilidade quase total de passarmos por um novo “período discado”. O acesso à filmes, artigos e redes de qualidade será dificultado e o mesmerismo do vale do silício ficará na superfície por um tempo. Para fazer uma comparação: a luta contra a desinformação, nesse momento, só está, ao meu ver, no mesmo patamar de importância que a luta à favor da agroecologia e do manejo adequado dos nossos solos, subsolos, águas e riquezas minerais. Esse trato adequado com a natureza e a necessidade de “despoluir” ela são, talvez, tão urgentes quanto a necessidade de lutarmos agora para evitar um retrocesso de décadas no acesso à informação.

Algumas referências:

Alguns sites/iniciativas que você já deveria conhecer:

The pirate bay (filmes, séries, programas, aplicativos, músicas e mais), via torrent.

Sci-Hub, Library Genesis (LIBGEN) e The Internet Archive (iniciativas para disponibilizar livros e artigos científicos na surface web).

Diaspora, Mastodon (iniciativas de redes sociais, existem outras sugestões não apenas de redes mas de outros utilitários no último site das referências).

Os * são sinais de edição.

--

--