Naquele tempo era melhor?

viniciusluiz
4 min readOct 4, 2018

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Uma reflexão pessoal sobre saudosos da ditadura (e simpatizantes de Bolsonaro)

Não vivi a ditadura, nasci em 1986, ali no meio do Plano Cruzado, mas como todo brasileiro nascido naquela época, peguei o rescaldo do regime militar, que ainda deixava sinais em símbolos como as marchas de 7 de setembro e a inflação, herança do endividamento. Para quem não sabe, nasci em Padre Paraíso, cidade que fica no Vale do Jequitinhonha e em seus tempos áureos viveu da renda das pedras preciosas, que muitos ainda juram que estão debaixo da terra. Ali, o regime não atuou diretamente, apesar de jovens terem sido presos por criar um jornal subversivo para falar do governo local, isso já nos anos 80. A partir do contato, via rede social, de pessoas da cidade que apoiam o candidato favorável ao regime militar, fiquei encucado em entender por que existem pessoas ali que sentem saudades da época da ditadura.

A cidade hoje é pobre, mas já foi mais. Dados do Índice de Desenvolvimento Humano — Municipal (IDH-M) mostram que em 1991, 3,67% das pessoas entre 18 e 20 anos concluíam o ensino médio. Esse percentual passou a ser de 28,92% em 2010. Era comum nos meus primeiros anos de escola me deparar com colegas, sobretudo mais velhos, que discutiam se iam continuar os estudos depois da quarta série ou se iam encerrar tudo na oitava. Era normal não ter perspectiva na escola e partir atrás de um emprego que garantisse a sobrevivência. Não por menos, a renda per capita era de menos de 140 reais (a preços de 2010), o que colocava a maioria da população na faixa da extrema pobreza. Era comum ver gente pedindo comida de casa em casa na hora do almoço.

Dos primeiros anos, me lembro de uma cidade violenta, em que a sentença de cada um determinava a lei. Desde ouvir sobre um atentado a bala, com direito a troca de tiros entre dois figurões da cidade num boteco na praça principal. Até eu mesmo ver sangue derramado na porta do mercado, de um rapaz que matou outro a facadas. Sem contar a morte que aconteceu pertinho de casa, a machadadas. Cada pessoa se julgava capaz de decidir o que era certo, sem mediação do estado, e resolver ali mesmo suas questões, com a arma que tivesse a mão. O caos não era regra, algumas poucas famílias ainda ostentavam riquezas da época das pedras ou mantinham negócios com agricultura ou comércio.

Na escola, não era raro uma professora suspirar diante da indisciplina dos alunos e sentir saudades da época em que existia Moral e Cívica. Aliás, ainda sobreviviam livros didáticos dessa matéria e de OSPB, Organização Social e Política Brasileira, coisas dos milicos. Também não foram poucas as vezes em que implantaram a execução do hino nacional como forma de colocar os alunos no eixo, o que ocorria em respeito ao hino, mas não durava por muito tempo.

Veio o Plano Real, os preços ficaram comportados, algumas pessoas conseguiram controlar as contas e planejar o consumo. As coisas melhoraram um pouco, mas muita gente quebrou. Foi a derrocada de famílias tradicionais, cujos membros, sem a mesma riqueza e poder, passaram a viver de sobrenome. Os anos 2000 foram ainda piores, para elas. Enquanto a extrema pobreza e a pobreza caíam, a média de vida aumentava e os anos de estudo também, os serviços baratos do dia-a-dia foram encarecendo. Já não existia no mercado, gente disposta a fazer pequenos bicos por R$ 10 ou em troca de pequenos agrados. Ou tinham emprego ou tinham Bolsa Família, talvez os dois. Teve quem conseguiu fazer faculdade.

Desde o fim da ditadura, o país caminha para se tornar menos desigual. Há quem não concorde, que queira barrar esse percurso, seja por temer que a melhoria das condições do pobre implica em perda para a classe média, seja por fracasso pessoal ou pela simples incapacidade de dividir o mundo com o diferente.

Posso estar fazendo a leitura errada, mas acredito que muito desse apoio que hoje determinados grupos dão a Bolsonaro vem de uma saudade genuína daqueles tempos. De um tempo em que uns baixavam a cabeça para outros, em que o respeito se impunha pela força (nota: a violência não diminuiu). Junto dessa saudade, vem todo o fetiche pela ordem militar, pelos símbolos cafonas, pelas regras que não se justificam, mas fazem parecer que tudo está em ordem. O resto das justificativas vem para dar verniz racional a essa escolha: evitar o tal comunismo, impedir que o PT volte a governar, defender a família, combater a corrupção. Mesmo que outros candidatos tenham propostas e biografias alinhadas com esses valores, a escolha vai ao encontro do candidato que menos reúne condições e experiência capazes de garantir um bom governo, mas é o candidato que pisca pro eleitor que tem saudades daquela época ou que, ao menos, ouviu falar muito bem dela.

Boa parte do eleitorado de Bolsonaro faz isso, ao dizer que deseja evitar um mal maior, se agarra na ideia de um passado que nunca existiu.

Matriz da cidade em primeiro plano

Fonte dos dados: Atlas do Desenvolvimento Humano

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