Manual sobre a linguagem de pessoas não-binárias em mídias traduzidas
Equipes de dublagem e legendagem de mídias necessitam de cuidado com a linguagem pessoal de pessoas trans e não-binárias, dois grupos marginalizados que estão tendo mais e mais aparições e representações.
Personagens mulheres trans e homens trans estão há um tempo conquistando espaço. Pessoas não-binárias estão há pouco tempo ainda, com representações menores e bem menos frequentes em comparação às pessoas trans binárias.
Com mulheres trans e homens trans não há tanto segredo:
- mulheres usam artigo a, pronome ela, flexão com a, e marcadores de gênero socialmente femininos (ex: mãe).
- homens usam artigo o, pronome ele, flexão com o, e marcadores de gênero socialmente masculinos (ex: padre).
Agora quando se trata da questão de pessoas não-binárias, temos uma variedade que pode ou não estar dentro do convencional. Pessoas não-binárias podem adotar uma ou ambas linguagens aceitas pelas normas de nosso idioma, o português.
Porém é comum pessoas não-binárias que utilizam linguagens não aceitas pelas normas, como pronome elu e palavras flexionadas com e (linde, menine, etc). Para isso existe a proposta das neolinguagens, que visam incluir e validar essas linguagens fora do padrão.
Aqui vou falar especificamente de traduções de mídias estrangeiras para a língua portuguesa.
Em inglês existem os pronomes he (ele) e she (ela). E também o pronome they, que é o plural dos outros dois. Mas também tem um segundo uso previsto há séculos pelo idioma: como pronome singular neutro.
They é muito usado em situações em que o gênero de uma pessoa é desconhecido ou escondido. Assim como falamos no português “esqueceram esse objeto aqui” ou “me contaram uma coisa ontem”, they é usado com essa mesma finalidade.
E também é um pronome muito comum entre pessoas não-binárias que não se sentem contempladas por nenhuma das linguagens do padrão. Esse uso esteve crescente. E pessoas não-binárias que usam they estão aparecendo mais e mais.
Bem, vamos ao problema que quero discutir aqui, que é um grande vácuo entre a língua inglesa e a língua portuguesa. Uma pessoa que usa pronome they: que linguagem ela deve ter em nosso idioma?
Existe uma resposta certa? Bem, não exatamente.
Acredito que podemos separar as soluções, a princípio, em duas partes:
1- Se o estúdio responsável pela dublagem/legendagem estiver disposto, pode-se adotar a neolinguagem. Um exemplo recente disso é a dublagem da série Degrassi, que adotou o pronome elu para Yael, uma pessoa genderqueer. Ainda existe muita resistência à neolinguagem (mesmo que seja apenas uma pessoa num elenco inteiro que usa uma linguagem diferente). Por isso tomar esse caminho é se expor a críticas, chacotas, talvez boicotes. Mas, em comparação ao outro caminho, é menos trabalhoso para a equipe e mais ético.
Qual linguagem a ser utilizada vai precisar de discussão e pesquisa. Minha sugestão, se me perguntassem, seria usar a linguagem que esteve sendo mais aceita e difundida por grupos não-binários, que é a utilização do pronome elu e palavras flexionadas com e. Pode não haver artigo (algo até previsto pelas normas da língua), ou pode haver algum neoartigo (e, le, etc). Porém é possível pensar em outros neopronomes, como ile, el, e il.
2- Se o estúdio não estiver disposto a sair das normas da língua (e não acho que todo caso assim deveria ser julgado como apenas discriminação ou preguiça de enfrentar o sistema), bem, então acredito que temos três soluções:
A) adotar a outra linguagem designada para a pessoa.
B) utilizar ambas as linguagens.
C) optar por uma das linguagens usando um motivo pessoal.
O maior problema de se lidar com pessoas não-binárias é que muita gente prefere manter a linguagem designada, seguindo uma lógica de “a pessoa nasceu homem/mulher, então será essa tal linguagem”, o que perpetua opressão ao impor linguagens de acordo com o sexo biológico (algo que atinge pessoas trans binárias também).
Um exemplo disso foi o caso recente de Syd, ume* personagem da série Um Dia de Cada Vez (One Day At a Time). E para perceberem a ignorância e o despreparo ainda existentes, depois de reclamações apareceu legenda traduzindo they como “eles”, o que no contexto não fez o menor sentido e ficou ridículo.
E, falando disso, já vi essa mesma gafe sendo cometida em alguns outros espaços, onde numa tentativa falha de traduzir o pronome they, mesmo estando evidente que era um pronome individual, traduziram-no como eles. Isso inclusive aconteceu no Facebook.
O mínimo que um estúdio que não quer romper com normas limitantes e excludentes pode fazer é procurar a alternativa mais ética possível. Por isso, creio eu, que essas soluções podem ser viáveis, mesmo que modifiquem a particularidade original des personagens. Vou explicar cada uma.
A) Muitas pessoas não-binárias que desconhecem ou que rejeitam a neolinguagem procuram se encaixar como podem nas duas linguagens padrão. É muito comum então adotarem a outra linguagem designada a elas. Seria possível então colocar a pessoa declarando sua linguagem e talvez dizendo algum motivo (ex: “não quero a linguagem associada a meu gênero designado”).
Obs: Apenas fico com um pequeno receio de que essas pessoas sejam confundidas com pessoas trans binárias, ainda mais se não houver uma constatação explícita sobre a não-binariedade delas.
B) Há também pessoas não-binárias que preferem por muitos motivos adotar para si ambas as linguagens, podendo ter uma preferência maior por uma, podendo alternar com frequência entre elas. Uma pessoa não-binária usando linguagens diferentes em cenas diferentes pode ser uma boa referência, aliás.
Talvez seja interessante colocar a pessoa mostrando indiferença com a linguagem (assim aceitando qualquer uma) ou mostrando gostar de ambas.
C) Existem também pessoas não-binárias que utilizam as linguagens padrão associando-as com neutralidade ou disassociando-as de gêneros binários/qualidades femininas e masculinas. Como a norma usa a linguagem “masculina” para também neutralizar palavras e frases (“um homem e uma mulher são eles”), teoricamente, essa linguagem também é neutra por si só. Um personagem, mesmo designado homem, poderia usar essa linguagem seguindo essa lógica. E há pessoas que associam a linguagem “feminina” com a palavra pessoa, que é um termo neutro. Uma personagem, mesmo designada mulher, poderia explicar sua escolha assim, além de fazer muito uso da palavra pessoa para si para reforçar isso.
Aqui farei uma observação usando o exemplo da animação Steven Universe. Na história existe uma raça alienígena chamada Gem. E esses seres usam para si somente a linguagem “feminina”. Poderíamos talvez deduzir que para essa raça essa linguagem é única e sem gênero, visto que é uma raça sem sexo e sem concepções de gênero. Quando o personagem Steven, um menino meio-humano e meio-Gem, se funde magicamente com sua amiga Connie, se forma um novo ser chamado Stevonnie. Elu* usa originalmente pronome they. A dublagem optou em utilizar a linguagem “feminina”. Considero isso muito válido tanto por dar preferência à linguagem das Gems (Stevonnie ainda é 1/4 Gem) quanto por romper com o senso comum de usar a outra linguagem por haver um menino envolvido.
A solução C pode ainda abrir brecha para se manter a linguagem designada, mas antes tendo essas motivações do que seguindo a lógica opressiva do sexo biológico. O mínimo que os estúdios podem (e devem) fazer é respeitar a criação e a retratação das pessoas não-binárias. A representatividade é importante, assim como respeitar as individualidades.
Também considero muito válido e versátil usar a sintaxe neutra sempre que possível (ex: “você tem formação em qual área?”), usar palavras neutras para a pessoa, fazendo uso de outras palavras como “de” e “lhe” (“casa de Ariel”, “entregou-lhe o objeto”), evitar sempre que possível os pronomes. É uma alternativa que se torna mais difícil quanto mais recorrente for seu uso, mas não é algo impossível. Por isso quem não quiser se dar esse trabalho pode optar só pelas sugestões dadas acima, ou combinar essa alternativa com as demais.
Por mais que eu tenha dado alternativas dentro das normas, a tendência é que a neolinguagem se torne uma demanda impossível de se ignorar. Porque, bem, eu falei só de personagens que usam they. Agora como proceder com personagens que usam neopronomes como ze, ve, ey?
E mesmo personagens que usam they deveriam ter direito total e indiscutível a um neopronome do nosso idioma, considerando que o inglês prevê um pronome neutro e nossa língua, não. Quem merece mais respeito; um indivíduo ou uma língua? Lembrando que línguas podem mudar e estão aqui para criar comunicação, não excluir pessoas. Isso é uma gigantesca falta da língua portuguesa (e outras línguas) que denota um dos principais motivos da proposta da neolinguagem. Até quando vamos nos recusar a sermos fiéis às particularidades de personagens transgênero, sendo que mais e mais essa fidelidade será cobrada? Pensem no futuro.
Por enquanto acredito que isso é tudo que tenho a dizer sobre esse tópico. Gostaria muito que as ideias desse texto chegassem aos estúdios (e quem mais tiver interesse) e auxiliassem em representações dignas de pessoas não-binárias nas mídias.
*Para personagens que usam pronome they adapto o pronome para elu e uso flexão com e.