Em Swarm, a limonada é servida com gelo e sangue

Vitor Evangelista
5 min readMar 24, 2023

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Qual é o seu artista favorito? (Foto: Amazon Prime Video)

Vitor Evangelista

O conjunto de abelhas de uma colmeia forma um enxame. No mundo de Swarm, os ferrões dão lugar aos posts das redes sociais, transformando a inflamação da picada na enxurrada de mensagens e recados online. Mas, em vez de defender a abelha-rainha do reino animal, os insetos da série original do Prime Video se reúnem para cultuar e resguardar a estrela pop Ni’Jah.

Inspirada na figura de Beyoncé, a cantora fictícia é centro da trama metamórfica de Swarm, produção criada por Janine Nabers e Donald Glover. Emprestando elementos de ambientação e tom de Atlanta (que tem ela como produtora e ele como idealizador), a dupla mascara questões de identidade e pertencimento no casulo texano de Dre (Dominique Fishback), uma fã de Ni’Jah que extrapola os limites do aceitável para proteger sua ídola.

O surrealismo vira regra nesse ambiente hermeticamente controlado pela ironia, ao passo que a narrativa de uma serial killer em ascensão perpassa diferentes cidades e ambientações suburbanas. Em Houston, cidade natal de Nabers, Dre viaja de um clube de strip-tease, passando pelos bastidores de um festival e chegando até um culto feminino cheio de energia de boas vibrações e muito controle mental.

Donald Glover trabalhou com Beyoncé no live-action de O Rei Leão, quando interpretaram o casal Simba e Nala (Foto: Amazon Prime Video)

O início do furação acontece no apartamento de Dre e Marissa (Chloe Bailey), amigas que compartilham desde a infância o amor pela artista pop. Agora de pé firmado no início da vida adulta, elas se encontram em pólos opostos: Dre mantém o fervor da juventude, alimentando uma conta virtual em defesa da cantora, e Marissa foca seus esforços no namoro com Khalid (Damson Idris) e almeja novos horizontes para o futuro.

Desentendimentos levam a desavenças, que se transformam em negligência e tragédia. Quando Dre percebe que sua âncora moral teve o vínculo desfeito, é então que a bússola perde o compasso e as vozes falam mais alto, propiciando que Dominique Fishback brinque com todos os apetrechos disponíveis.

Desajustada e em total estado de colapso, a personagem se transforma em juiz e executor. A atriz modula os níveis de comoção e temor, exercitando músculos de humor, terror e ação, interpretando a protagonista em diversas frentes, da versão virginal e pura até a Dre mais masculinizada e acostumada a internalizar cada emoção, sufocando-se no processo de matar as versões anteriores de si.

Filha de Michael Jackson, Paris Jackson faz uma ponta no segundo episódio, onde interpreta uma stripper biracial com nome artístico Halsey (Foto: Amazon Prime Video)

Afinal, para que Ni’Jah seja vingada por cada comentário negativo e sabichão, Dre necessita trucidar seu ego, sua figura e se prostrar despida de impurezas frente à sua Deusa, vivida por Nirine S. Brown e fotografada em imagens rápidas, iluminada por lâmpadas etéreas e em uma vibração distinta do mundo real de Swarm. Se é que ‘real’ pode ser usado para caracterizar o cosmos da produção.

O surrealismo de Atlanta, constantemente negado por personagens mundanos como Paper Boi e Earl, agora é abraçado por Dre e seus coadjuvantes, induzindo a série numa avalanche de desconforto, que se enlaça aos tons saturados da fotografia encaixotada de Drew Daniels e Gabriel Patay e a trilha sonora incômoda de Michael Uzowuru. Swarm zumbe como as abelhas que transforma em realidade, subvertendo o que se espera de uma série protagonizada por uma assassina no auge da juventude, atravessada pelo machismo e pelo racismo da sociedade do espetáculo que Glover e Nabers exploram sem medo do precipício.

Malia Obama, filha do ex-presidente dos Estados Unidos, contribuiu no roteiro do quinto episódio, “Girl, Bye” (Foto: Amazon Prime Video)

As lendas urbanas que orbitam Beyoncé, seu marido, sua irmã, a mordida que levou: nada é fora do limite para o time de roteiristas, que não se acanha ao cutucar outros nós de tensão da cultura pop, chegando a escalar Billie Eilish para viver a líder do culto feminista que domina o sombrio quarto capítulo. A cantora faz bonito em sua estreia como atriz, decantando todo o terror e a tortura psicológica sob sua voz turva e sussurrante.

Mas nem quem cantou sobre os pesadelos noturnos na cama da escuridão é páreo para o balanço de Dre, uma fã assídua e ferrenha, disposta a colocar no pedestal Ni’Jah e mantê-la no alto, não importam quais sejam as circunstâncias. O amor da fã pela artista não precisa ser explicado e detalhado, já que a estética de Swarm o faz sem gastar saliva. As sequências musicais se embriagam de luxúria e deslumbre, nos envolvendo como Dre o faz.

Indicada ao BAFTA por Judas e o Messias Negro, Dominique Fishback recebe o holofote em Swarm, atuando em demasia com a sensiblidades dos olhos e das lágrimas(Foto: Amazon Prime Video)

A limonada é servida com gelo e sangue, muita indigestão e um rastro de corpos. Dre tem sua narrativa colocada em pausa no sexto e penúltimo capítulo, quando a série apresenta sua visão sobre a ascensão dos documentários de crimes reais. Em Fallin’ Through the Cracks, a detetive Loretta Green (Heather Simms) toma conta da situação e Swarm borra ainda mais as linhas entre o real e o fictício, na melhor e mais inventiva meia hora de sua temporada inicial.

Uma lenta investigação policial aterra o clima bizarro da produção, explicando as noções de lógica do universo do seriado. Em partes iguais se inspirando nos falsos documentários que povoam a TV aberta e no falso grife do true crime evidenciado pelo streaming, o episódio seis assusta e termina com o exercício de metalinguagem que Donald Glover e seu irmão Stephen acostumaram-se a desdobrar em Atlanta. O que é verdade no mundo infectado e inflamado pela cultura dos fãs? O que é faz de conta na realidade que abraça a sentença antes de ouvir o depoimento do acusado?

Sétimo e derradeiro capítulo, Only God Makes Happy Endings faz do anticlímax sua arma mais eficaz (Foto: Amazon Prime Video)

Para as mentes que transformaram Beyoncé em Ni’Jah, e amor de Beyhive em rastro da matança, a resposta está no ferrão e na dor anestesiante dos anticorpos. A excepcional Dominique Fishback lidera um elenco de atores novatos na indústria, recebendo aqui suas chances de ouro, enquanto Janine Nabers e Donald Glover invertem as regras do jogo, acariciando uma anti-heroína da pós-modernidade, na série mais original e imperdível de 2023 que, recheada de esquisitices próprias do gênero do horror corporal mesclado ao drama de estrada, não deveria passar batida pela audiência que tanto explora e encanta.

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Vitor Evangelista

assisto filmes, séries e drag race, e depois escrevo sobre isso