Hamnet: Maggie O’Farrell planta flores na morte
Vitor Evangelista
“Este romance é o resultado da minha vã especulação”, sintetiza a irlandesa Maggie O’Farrell no texto que conclui Hamnet, premiado livro que lançou em 2020. A trama é uma ficção histórica, analisando a família de William Shakespeare, com foco na relação entre seus filhos gêmeos, esposa e a tragédia que acometeu o lar.
Na reconstrução de um passado que existiu entre pequenas anotações e mínimas informações concretas, o livro traduzido por Regina Lyra brinca de amarelinha na linha do tempo. No presente, Hamnet e a irmã Judith precisam da ajuda da mãe, da avó e da irmã mais velha Susanna, mas todas desapareceram de vista.
“Não há nada mais a fazer. Assim, como três de seus filhos foram levados, dois ainda bebês, Judith os deixará. Eles não mais a terão”.
No passado, conhecemos Agnes, sua herança divina que esbarra no realismo mágico da escritora. A jovem, que se conecta à natureza e tem o dom de prever certos destinos, se apaixona por um rapaz, de família humilde e dote nenhum para cortejá-la. Sem nunca nomear o “autor” que engravidou Agnes e logo se grudou à ela, Hamnet floreia todas suas paisagens.
Seja o campo ou a cabana onde vivem, a escrita de O’Farrell não se apressa em descrições rápidas ou diálogos corriqueiros. A poesia que Shakespeare viria a celebrar é aplicada no traquejo e no ritmo da história, com bastante margem para desilusões e ponderações. O romance compartilha a visão infantil e ingênua do pequeno Hamnet com o olhar encantado da mãe.
“Ela faz, mais devagar, o mesmo caminho da vinda. Como é estranho percorrer as mesmas ruas, a rota ao contrário; é como escrever em cima de palavras velhas, suas pernas funcionando como uma pena, voltando sobre o mesmo texto, reescrevendo, apagando”.
A princípio, o passo parece devagar demais, sem a fluidez que acomete as páginas lá depois da primeira centena. Maggie O’Farrell, que manteve essa obsessão pelo passado perdido da família do poeta imortal, descarrega seus espíritos e fantasmas na criação de um relato doloroso da perseverança e da tristeza do homem.
O luto é encarado como inimigo e amante, ressignificando a Arte que nasceu depois da morte e da desolação. A escritora não mede esforços para colocar ardor e agonia no que sentem seus personagens, pessoas que buscam sua posição na sociedade do final dos anos 1500. Em frases ríspidas e calorosas, o livro desconstrói a ausência e rearranja a noção de seguir em frente que impera desde que o mundo é mundo.
Celebrado e premiado, Hamnet chegou ao Brasil tanto pela publicação da Intrínseca, quanto pela caprichada edição do finado Clube Intrínsecos. O que Maggie O’Farrell cozinha de precioso e único na sua imaginação é justamente o zelo ao redor de toda uma jornada: Agnes nasce e cresce com a poesia aliada ao lado selvagem, e o processo de se apaixonar pelo escritor é elemento forte na mudança de sua vida.
Quando se torna mãe, ela reinterpreta tudo que já entendeu como corriqueiro e deixa de herança aos filhos uma cultura de riqueza nos detalhes. Frente à inevitável fatalidade, ela cai refém do destino, enquanto o marido se afasta para escrever o que seria sua interpretação do luto. No conto trágico de um rei e um fantasma que assombra seus pensamentos, a memória da eterna criança é visitada e honrada.
“Às vezes, Susanna tem a impressão de que Agnes não é apenas sua mãe — e dos gêmeos, claro -, mas, sim, mãe de toda a cidade, de todo o condado”.
Nos registros históricos, não se sabe se Hamnet morreu de peste bubônica ou se foi Judith quem partiu e deixou a família despedaçada. Poucos são os conhecimentos sobre a rotina e a vida de Agnes (que na vida real é chamada Anne Hathaway), e muito menos a respeito de onde viveram e morreram aquele tronco da genealogia de Shakespeare. O que O’Farrell faz é transformar o buraco em tela em branco.
Ela se transporta a um ponto-cego da História da humanidade e dali floresce respostas inéditas para perguntas antigas. Povoa com mágica e paixão uma realidade brutal e distante, fria e abandonada. Seu Hamnet é aventureiro, protetor e íntegro. Qualidades que inspiraram uma infinidade de heróis a quem Shakespeare forneceu a matéria-prima.
“- Ele nunca mais vai voltar?”