Scrapper: não contavam com a minha astúcia!
Vitor Evangelista
Scrapper nos apresenta Georgie (Lola Campbell), uma menina sapeca e arteira. Ela vive sozinha depois da morte da mãe e divide a rotina entre falsificar provas para que o governo não descubra a mentira e rodar o bairro ao lado do amigo Ali (Alin Uzun), em busca de bicicletas dando sopa para que roube e revenda as peças.
A coisa muda na chegada de Jason (Harris Dickinson), o pai que Georgie não conheceu em doze anos de vida. De primeira, a presença do homem é respondida com agressividade e muita aversão. Georgie sente a falta da proteção e do amor da família, mas construiu seu habitat de maneira solitária e autossuficiente, se distanciando da vulnerabilidade.
O filme tem roteiro e direção de Charlotte Regan, interessada em pintar à cores vibrantes uma história já conhecida de reaproximação e criação de vínculos. Para isso, o Reino Unido que acolhe os personagens tem céu azul saturado, verde lima nos gramados e uma porção de tons radiantes de amarelo e púrpura nas paredes e ambientes internos.
Como se tomasse parte na imaginação da criança, o mundo dos adultos é visto com rigidez e muito cinza, num espelho que parece homenagear a obra de Roald Dahl, da escola turbulenta de Matilda até o mais espalhafatoso dos cômodos da Fábrica de Willy Wonka. Existe até mesmo uma sucessão de cortes cômicos dos adultos que circulam Georgie, dando seus dois centavos a respeito da situação em cenários cartunescos.
Na montagem de Matteo Bini e Billy Sneddon, o filme se diverte nas ponderações infantis, articulando que tipo de pessoa Jason é. Georgie e Ali imaginam um passado nebuloso e mafioso, caricato e satírico, ao traçar o perfil do homem misterioso que surge em razão da morte e permanece ali por enxergar a vida.
O que fica claro em Scrapper, evidenciado pelo prêmio que ganhou em Sundance, é o caráter emotivo que Regan proporciona a pai e filha. Dickinson vive Jason como um garoto crescido e inconsequente das escolhas tomadas há uma década. Ele entende quem Georgie é e não tenta mudá-la ou domá-la à base do grito ou da bronca.
Certos momentos até imitam uma relação de irmãos, e não de figura paterna e filha pré-adolescente. Scrapper explicita uma discussão de gênero que passa batida à primeira camada, e se intensifica quando enxergamos a pequena Georgie em completo controle de sua vida, e Jason como uma peça deslocada. A mulher, desde muito pequena, sendo encubida de responsabilidades, e o homem, para lá dos 30 anos, ainda visto como uma criança sem preocupações.
É criada, portanto, uma nova dinâmica familiar: a filha que não sente falta do pai, justamente pela ausência. Aqui, o texto de Regan se acentua em harmonia à atuação fantástica de Lola Campbell. “Agora que eu te conheço, não tem como eu não saber quem você é”, confessa a pequena, florescendo a inocência que lhe foi atrasada pelas responsabilidades seguidas do luto. O filme converge a rebeldia juvenil com o descaso jovem adulto para dar liga a uma trama de pequenos gracejos e grande envolvimento emocional.
Scrapper segue nessa jornada de muita astúcia na maneira de contar uma história de infância atravessada por sentimentos maduros. Na mesma família das sensações exploradas em filmes como Projeto Flórida (2017) e Aftersun (2022), mas desta vez recusando a melancolia em prol de um lúdico esperançoso e um tanto serelepe, em concordância ao jeito que Georgie se comporta e ajusta o presente.