Sofia Coppola invade o castelo e resgata Priscilla
Vitor Evangelista
A fama é um processo desumanizador, solitário e degradante. Pelo menos é assim que Sofia Coppola o filtra em Priscilla, adaptação do livro de memórias da ex-esposa de Elvis Presley. Depois de se mudar com a família para a Alemanha Ocidental por conta do posto militar do pai, uma jovem estudante é convidada para a casa do Rei do Rock, que àquela altura já colecionava tietes pelo mundo.
Astuta e silenciosa, a personagem que rendeu à Cailee Spaeny um prêmio em Veneza aceita e começa a se aventurar na companhia do músico. Com apenas 14 anos, dez a menos que ele, uma festa se transforma em outra, e quando ele parte do posto militar de volta ao castelo em Graceland, ela fica à mercê.
Quem melhor para capturar a solidão e a solitude do romance e dos anos de formação do que Coppola? Se o atestado artístico assinado em Maria Antonieta já não fosse o suficiente, seu trabalho de recriação dos mitos femininos e a desconstrução do processo individual de crescer e amadurecer em filmes como On the Rocks, adicionam ao todo. Além disso, Sofia sabe muito bem o que é carregar um sobrenome para lá de conhecido.
Dessa forma, a diretora não se interessa em aterrorizar quem assiste com os temores de Priscilla, ou mesmo montar seu Elvis (Jacob Elordi) como um troglodita bidimensional. Essa ainda é a história de amor da garota, e o roteiro evolui sua prematura adolescência em um florescer de maturidade que anulou muito da personalidade em anos tão importantes de rascunho e preparo.
Quando foi seduzida e intoxicada pela presença do homem, aqui acrescido os quase dois metros de altura de Elordi (e o metro e meio de Spaeny torna a diferença ainda maior), a jovem texana ouve cada palavra e frase do amado como feitiço. Ele arqueia as costas e sussurra em tom maciço as juras de amor, que escorregam pelos ouvidos dela e ali formam base. Por isso, a mera intervenção dos pais, papéis de Ari Cohen e Dagmara Dominczyk, não gera resultado algum.
À partir do momento que Elvis e Priscilla trocam olhares e ele dirige a ela a atenção que abriu um buraco em seu âmago no período de mudança dos EUA, o destino estava traçado. Daí em diante, Coppola convoca as frentes técnicas para o fronte. No figurino de Stacey Battat, Priscilla é desenhada, rabiscada e, enfim, finalizada.
No penteado e na maquiagem, vemos tanto o passar do tempo na moda norte-americana (do pin-up ao excesso de laquê que transforma seu cabelo castanho em coroa de Rainha), quanto o amadurecimento de uma menina em posição de poder esvaziado. A trilha sonora, departamento proibido de licenciar canções de Elvis, se rearranja em covers da época, uso de músicas contemporâneas e o tato sempre apurado da banda Phoenix, encabeçada por Thomas Mars, esposo da diretora.
Os tons de azul e rosa que percorrem toda a jornada de Priscilla auxiliam na manutenção da mística de Graceland, o castelo proibido onde Elvis é soberano absoluto, onde os banquetes são fartos, os telefones não param de tocar e o Colonel Tom Parker não pisa, mas esmaga a todos apenas com a influência que exerce em cada peça do tabuleiro. A direção de fotografia de Philippe Le Sourd se engancha na montagem de Sarah Flack na incessante tarefa de emoldurar os detalhes de uma vida fora do comum.
As inevitáveis comparações com a cinebiografia de Elvis sob a direção de Baz Luhrmann não poderiam distinguir mais os trabalhos. O filme de 2022 buscava um caleidoscópio artificial e opulento no que tangia a imagem do roqueiro como alicerce da América passada. O desempenho que colocou Austin Butler nos palcos e com troféus em mãos era o retrato acalorado de um homem sempre atrás na corrida da própria vida.
O que Elordi traz de refrescante, além de ser um Elvis fisicamente imponente e ereto, é o controle de emoções e cadência, da voz grossa que sussurra mandamentos eternos, passando pela postura e as reações que ele próprio retém, na raiva, no abuso emocional, nas agressões e no vício em comprimidos. Spaeny bebe de todas essas soluções de texto e de imagem para que sua Priscilla não seja objeto de pena ou de salvação, e sim um respiro de autenticidade.
Fato é que esses astros masculinos do passado (dos atores como Marlon Brando até os cantores como John Lennon), com biografias cheias de marcas de violência, costumeiramente obscurecem todos em seu entorno, silenciando qualquer narrativa que diverge do discurso vigente. Com a morte de Elvis, e a longeva presença de Priscilla na mídia, junto de sua filha e sua neta, nasce a possibilidade de contar sua história da maneira como ela o vivenciou, dando a devida importância para os eventos sem meias palavras, concessões ou simplificando o casamento.
Sofia Coppola faz em Priscilla o que se tornou sua marca de autora e principal qualidade: oferece à mulher por baixo do penteado alto, delineado preto e vestidos sem estampas a chance de ser ouvida e percebida. Há a mágica do amor, que não anula o silêncio e a distância, os rumores de adultério, os episódios de raiva e a negligência emocional. Ela enxerga a possibilidade de viver bem e à parte em uma realidade fora do mundo habitado pelos cliques e flashes que enchiam os portões da mansão, por vezes lida como prisão, por vezes como palácio.