Terceira temporada de Ted Lasso azeda clima de jogo beneficente

Vitor Evangelista
9 min readJun 18, 2023

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Jamie Tartt vence sozinho em temporada “final” repleta de passes errados e cartões vermelhos (Foto: Apple TV+)

Vitor Evangelista

“O esporte é uma bela metáfora”, define o jornalista Trent Crimm no que pode ser o ano final de Ted Lasso. ‘Pode’ pois a emissora original, Apple TV+, não deu notícia nenhuma de uma possível renovação da série. Até o momento, com as votações para o Emmy 2023 abertas, os ares indicam que a série com o nome do protagonista acabou, mas uma derivada pode nascer À Maneira do Richmond.

Título do livro que Crimm, personagem do irreverente James Lance, escreve durante a temporada, a ideia de que o clube pode continuar sem o comando de Lasso (Jason Sudeikis) é sedimentada ao longo dos extensos capítulos, chegando ao ápice no décimo, quando o treinador aparece em poucos minutos. O protagonista, que assina o roteiro vez e acolá e tem título de criador, desenvolvedor e produtor, se afasta do furacão e deixa a bagunça acontecer com cada um de seus coadjuvantes.

Jamie Tartt previu o romance de Roy Kent e Keeley Jones quando colou seus pôsteres na parede do quarto (Foto: Apple TV+)

Esses, para a infelicidade dos fãs dos anos anteriores, que regridem em gênero, número e grau. Graças ao tempo maior de cada capítulo, que se estendem em durações mais largas que várias séries de drama, perdem a vergonha de mergulhar no melodrama e na dramédia adocicada, perdidos no mapa e no desenvolvimento das figuras que passam de queridas e carismáticas para caricaturas de si mesmas, andando em círculos, fazendo mímica no espelho.

Quem desvia dessa alvejada de balas é justamente aquele que constrói o único arco coeso da temporada três: Jamie Tartt (Phil Dunster). Primeiro explorado como ícone da arrogância, para depois receber o posto de redenção à conta-gotas, o centroavante começa a jornada final fazendo as pazes com Roy Kent (Brett Goldstein) e encontrando em Keeley Jones (Juno Temple) uma amiga antes de qualquer resquício de ciúme ou amor romântico escondido.

Mesmo com o retrocesso no episódio final, esse é o trio do ano em Ted Lasso — e a melhor coisa em uma temporada ruim (Foto: Apple TV+)

Jamie é o raio de sol em uma temporada repleta de tempestades de mesmice. Roy e Keeley, à exemplo, decidem assumir o status de solteiros, a contragosto da sobrinha Phoebe (Elodie Blomfield) e mesmo sem o seriado justificar a decisão ou o que acontece depois. Rebecca (Hannah Waddingham) nada na praia e morre na mesma canoa que naufragou no passado e em sua relação com ex-marido Rupert (Anthony Head), o bicho-papão, e o ex-namorado Sam (Toheeb Jimoh), o príncipe encantado.

O nigeriano, que tinha promessa de receber um arco de fôlego depois de conquistar o público e as premiações no ano anterior, ganha o revés de ser refém de uma história sem saída. Ele inaugura o restaurante que tanto almejava para se conectar com as raízes do país natal, orgulha o pai e sorri para todo o lado. E mesmo quando a história se enverga para temas de racismo, xenofobia e extremismo no esporte, assunto quente do lado de fora da ficção, tudo é resolvido numa conversa leve e despretensiosa.

De passeio de bike em Amsterdam até presente do melhor amigo no aniversário: Roy e Jamie evoluem o bromance na temporada 3 (Foto: Apple TV+)

Se é esse o percurso que Ted Lasso segue, quem se frustra são os espectadores, acostumados com o tratamento mais engajado de problemas sociais dentro do microcosmo do vestiário inglês. A saúde mental do protagonista, rasura central da temporada dois, sai pela porta dos fundos com a ausência da doutora Sharon (Sarah Niles). De fato, os problemas dos personagens seriam melhor explorados e resolvidos com os conselhos dela, como é o caso de Colin Hughes (Billy Harris) e sua sexualidade.

O jogador com mais carisma e menos tempo de tela do AFC Richmond ganha uma sub-trama suculenta, que revela sua relação com Michael (Sam Liu), escondida dos amigos e da família, mas que encontra em Trent um ângulo que a série ainda não trabalhou: a inserção de figuras e tramas LGBTQIA+. Com futebol no centro de campo, e um tratamento feminino avantajado e nada interessado em reduzir personagens à imitação, a série se atrasou.

Tudo que Colin queria era poder beijar seu rapaz na hora de comemorar uma vitória (Foto: Apple TV+)

Colin é um jovem frustrado com a impossibilidade de viver a felicidade à luz do dia, Trent é um homem com mais experiência e bagagem para guiá-lo nessa estrada, parte da vida de todo indivíduo queer. As cenas entre os dois, sensíveis e com significados ocultos da verbalização, demonstram outra ponta de criatividade do time de roteiristas, mas a chama se apaga sem cerimônias. Além de proverem suficiente material para que James Lance arremate cada piada e momento de drama. E, em uma realidade onde Brett Goldstein venceu dois Emmys de Ator Coadjuvante, o justo agora seria um revezamento com seu colega Diamond Dog.

Após um evento envolvendo vazamento de fotos íntimas das namoradas dos jogadores, Colin se vê exposto para Isaac (Kola Bokinni), que dá um gelo nele. A trama de Colin, que nasce na vivência e nas experiências de construir seu ‘eu’ para o mundo, logo embarca na maneira como seu melhor amigo hétero reage à notícia, esvaziando qualquer potencial de subversão, ou como de praxe em Lasso, diversão com o trivial.

Todavia, Billy Harris entrega uma desilusão e luta interna que enriquece o escopo dramático da situação, mais uma vez atestando que, se as premiações quiserem honrar os coadjuvantes da série, elas podem fugir do óbvio e do passado, e dedicar as honrarias para os nomes de Harris, Lance e, sem pestanejar, Phil Dunster, o jogador mais valioso do torneio em 2023.

Entre escrever seu livro e mentorear Colin, Trent Crimm encontra espaço para enaltecer a diva Dolly Parton (Foto: Apple TV+)

Fica claro que quem escreve a série não faz parte da comunidade LGBTQIA+, ou, se faz, falha ao transformar em ficção uma realidade já desnudada. Ao terminar o namoro com Roy, Keeley embarca num romance com a chefe Jack (Jodi Balfour), em outra investida dramática que engana quem assiste. A troca entre as mulheres, capturada com a sagacidade de Temple e o ar de mistério de Balfour, também não demora a descer pelo ralo, em um término que desconversa a paixonite cultivada ali antes.

A pior temporada da série chega a questionar a qualidade do que veio antes, já que as falhas presentes em todos os campos, desde o texto sem pressa ou rumo, passando pela direção (destaque para a cena em que Colin se assume e a câmera não se decide em quem focar e perde toda a carga dramática do momento) e para o desenvolvimento semanal, com episódios vazios de significados ou cheio de discursos repetidos. Agora que já enxergamos para além das cortinas, o Mágico de Oz não engana ninguém.

Inspirado em Ibrahimović, o peculiar Zava (Maximilian Osinski) surge como esperança para o time, mas seu personagem é descartado em tempo recorde, sem ecos ou reflexo na trama [Foto: Apple TV+]

Na estreia, Ted leva o time aos esgotos de Londres para tirá-los do ambiente fechado do vestiário e ajudá-los a pensar. Cinco semanas depois, a delegação viaja à Holanda e passa pelo mesmo processo. No penúltimo episódio, Mom City, a mãe de Ted chega à cidade de surpresa, mas a revolta do filho com o passado e a omissão frente ao suicidio do pai não encaixa de maneira alguma com o restante da história, causando a sensação de que não houve planejamento ou esmero no processo de construir e encaixar cada núcleo.

A tarefa de realizar uma série de TV com uma dúzia de episódios, povoados por personagens diversos e distintos, deve vir acompanhada de um trabalho voraz em saber o que mostrar, quando e onde e, mais importante ainda, contrastado com o quê. Nessa toada final, Ted Lasso guarda seus momentos de ultimatos e decisões para fora das telas, como a redenção de Nate perante o antigo clube e a comunicação de que Ted deixaria o Richmond e voltaria para o Texas. Tudo é relatado e relembrado, e raramente mostrado.

Da inspiração de Star Wars, a promessa de O Retorno de Jedi se revelou mais na veia de A Ascensão Skywalker (Foto: Apple TV+)

Quando confidenciado ao Centro de Treinamento do rival West Ham, Nate é filmado como um vampiro no covil secreto. Rupert caminha pelas sombras, com um sorriso congelado no canto do rosto e a pior das atitudes. A arrogância e a ganância passam do chefe para o funcionário como maldição hereditária, até que o negativo impera e o programa relembra o público do seu crônico caso de não desenvolver vilões. Pecado fatal em uma trama esportiva, sedenta para armar a torcida dos mocinhos contra a dos malvadinhos.

Nate (Nick Mohammed) é o mesmo coração-mole que passou de chacota para profissional respeitado e virou a casaca em um episódio de raiva irremediada e passageira. Ele ganha a simpatia em retorno do relacionamento singelo que compartilha com Jade Sem Sobrenome (Edyta Budnik), a recepcionista do restaurante que ama. O namoro progride longe dos holofotes e todas as falhas de caráter dele são preenchidas pelo afeto, resultando em mais um caso de texto desinteressado em refletir as arestas do comportamento guiado pela inveja e o tal arrependimento que Ted, Roy e os jogadores, traídos por Nate, que rasgou a sagrada placa Believe, aceitam sem pensar duas vezes.

Enquanto Hollywood é atravessada pela Greve dos Roteiristas, a descompensada terceira temporada de Ted Lasso parece ter sido escrita durante os protestos e paralisações (Foto: Apple TV+)

Na guerra unilateral, o único que encrenca é Beard (Brendan Hunt), confrontando Nate na sequência que nasce no propósito de revelar mais do passado de Ted e a relação que construiu com o técnico-assistente. A origem de Ted é personagem principal da temporada, desde o surgimento do bigode e ainda mais evidente na trama que explora o relacionamento da ex-mulher com o terapeuta do casal, num exercício metalinguístico que muito lembra a turbulência de Jason Sudeikis no mundo real.

O romance está no ar na jornada de Rebecca, que supera Sam, vive com o fantasma não-exorcizado de Rupert e encontra promessa em um barco holandês. Waddingham continua encantando com a postura, a graciosidade e a força de sua personagem, emocionando na despedida com Ted e na súplica que faz ao técnico.

O momento, marcado pelas lágrimas e pelo mar azul de cadeiras vazias do estádio, conversa com uma promessa imaginativa: o possível enlace de Ted e Rebecca, referenciado nas menores entrelinhas, desde as visões da cartomante até as realizações tardias que a dupla costuma trocar nos capítulos que antecedem o final de cada temporada.

Com pedigree de “felizes para sempre”, temporada final de Ted Lasso rejeita os desfechos de comédia romântica (Foto: Apple TV+)

O simbolismo come solto, presente na caixa de fósforo e no soldadinho verde da chefa, mas afoga a esperança de um casal que, em momento algum entre os trinta e quatro episódios, se materializou em carne e osso. A dupla funciona à harmonia da amizade e cumplicidade, nos conselhos precisos e na camaradagem. Encerrar o arco de Rebecca de olho ao infinito próximo de alguém que lhe transmita o conforto que os relacionamentos passados falharam em cultivar é a mais gentil das despedidas que o final da série arquiteta.

O último episódio, intitulado So Long, Farewell, acaba com as esperanças de uma vitória simbólica da Premier League, mas sem choro nem vela. Os jogadores, que subiram de divisão e foram agourados por todos os abutres, terminam o campeonato com a medalha de prata, mas em total estado de liberdade e criatividade. A epifania de Ted no bar, acompanhada de desenhos animados e muita ilusão, resulta na prática do “total football”, tática que provém frutos graúdos para o Richmond.

Depois de farrear no Emmy de 2021 e 2022, Ted Lasso concorre com sua temporada mais fraca e pode ver outra série ganhar de lavada (Foto: Apple TV+)

Ao brincar de pincelar as posições e as jogadas, os personagens conseguem imitar os movimentos na vida fora do gramado verde. Jamie vence a guerra do rancor contra o pai e marca os gols que o levitam. Colin encontra paz na calma e nos desejos simples. O goleiro Van Damme (Moe Jeudy-Lamour) se depara com sua verdadeira identidade. Perto do banco de reservas, Beard enxerga prospecto, Nate se limpa das enfermidades e Roy entende seu novo papel.

Sobra espaço até para que Ted saúde o ídolo Pep Guardiola e transmita a ele o comando que serve de motor para a bondade e a empatia que o técnico americano cultivou e viu florir no vestiário e para além dele. Quando fecha os olhos e se prepara para sonhar no céu em direção ao lar, Ted Lasso enxerga os destinos e possibilidades que fazem do capítulo final uma delícia de ser desvendado e sentido.

Os acontecimentos utópicos fazem par de vaso com a construção do seriado no passado, cabeceando sem medo a mensagem de que, embora o real seja mais turvo que o desejado, sempre podemos ligar a TV e assistir minutos e mais minutos de uma sociedade de faz de conta em harmonia e perfeito funcionamento, tocando a bola para lá e para cá, ocasionalmente acertando o fundo da rede e correndo para o abraço.

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Vitor Evangelista

assisto filmes, séries e drag race, e depois escrevo sobre isso