A polêmica tentativa de embranquecer Machado de Assis
Luís Augusto Fischer aponta o processo de secundarização ou de escondimento da afrodescendência do escritor, que considera uma figura a ser resgatada pelo movimento negro
Ao caracterizar o escritor Machado de Assis, o professor Luís Augusto Fischer é nada parcimonioso e afirma que se trata de “um caso realmente raro de um sujeito especialmente inteligente e ao mesmo tempo operoso, em cuja obra podemos encontrar um tanto da alma do país em sua época”, e que para o Brasil tem “o valor de um Shakespeare, de um Balzac, de um Cervantes, de um Camões, um Dante”.
Destacar este brilhantismo é oportuno quando, ao longo do tempo, são percebidas tentativas polêmicas de atenuar a inegável afrodescendência do escritor. Machado viveu quase meio século até a escravatura ser abolida no país. Filho de mãe branca e pai negro, seus avós paternos eram alforriados. “Etnicamente, pelos critérios de hoje, ele é evidentemente afrodescendente. Em vida, ele nunca se reivindicou assim, mas hoje é bem possível, estimo eu, que ele se pensasse assim”, afirma Fischer em entrevista concedida por e-mail.
O professor concorda que houve “um processo de secundarização ou de escondimento” da origem afrodescendente de Machado. Não lembra “de isso ser enfatizado na escola ou em leituras dele antes dos anos 1980 finais, quando o tema da negritude começou, timidamente, a requerer espaço no debate crítico”. Depois disso, não saiu mais do horizonte. Fischer aponta uma questão interessante: “Machado é um escritor de tal porte e vigor segundo as melhores réguas da tradição literária ocidental, que sua trajetória de crescente consagração de fato prescinde desse aporte, por um lado, e por outro se fortalece quando esse aporte é considerado”.
A sutileza do tratamento de Machado para com a questão das pessoas escravizadas pode ter contribuído para que a militância negra não dirigisse a ele tributos similares aos rendidos a outras personalidades brasileiras afrodescendentes. Fischer lembra que isso, em parte, nasce já em Lima Barreto, “que considerava Machado um ausente, quase um conivente com a exploração”. O resultado é que não apenas o movimento negro mais recente, mas também a esquerda, por muito tempo tratou o escritor como um colaboracionista. “Parece-me que agora o debate está mais maduro, e figuras do campo crítico do movimento negro […] se empenham em mostrar que Machado era negro, discutir temas relativos a isso, enfim é uma figura a resgatar”, considera.
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS, onde leciona. É autor de vários livros, entre eles Inteligência com dor — Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2009), Machado e Borges — e outros ensaios sobre Machado de Assis (Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008) e Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores, 2000). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores, 2012), de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras, 2016), de Amaro Juvenal.
Qual o espaço e a importância de Machado de Assis na cultura brasileira?
Luís Augusto Fischer — É um dos raros gênios brasileiros, com o acréscimo de que foi um impressionante trabalhador braçal. Sua obra completa mais recente tem quatro volumes, cada qual com umas 1.500 páginas. São dez romances, mais de 200 contos, sei lá quantas crônicas, mais poesia, teatro, tradução, crítica, correspondência… Isso tudo na vida de um funcionário público exemplar, que trabalhou até pouco antes de sua morte. Isso tudo na vida de um cara que veio bem de baixo e encontrou caminho para ascender, em condições bem complicadas. Enfim, um caso realmente raro de um sujeito especialmente inteligente e ao mesmo tempo operoso, em cuja obra podemos encontrar um tanto da alma do país em sua época. Por essa conta, ele tem para o Brasil o valor de um Shakespeare, de um Balzac, de um Cervantes, de um Camões, um Dante. Uma sorte nossa ele ter existido!
Machado viveu de 1839 a 1908, e a escravatura no Brasil foi abolida formalmente em 1888. Filho de mãe branca e pai negro, seus avós paternos eram alforriados, em um país profundamente marcado pelo racismo. Há quem diga que ele era negro, há quem discorde. Ele era negro?
Luís Augusto Fischer — A pergunta atinge o coração da contingência, se eu puder usar essa velha palavra acadêmica. Um de seus amigos da maturidade, Joaquim Nabuco — um abolicionista de convicções conservadoras em política –, declarou que considerava Machado branco. Etnicamente, pelos critérios de hoje, ele é evidentemente afrodescendente. Em vida, ele nunca se reivindicou assim, mas hoje é bem possível, estimo eu, que ele se pensasse assim. O problema é menos dele do que da complexidade dos problemas sociais, culturais e mesmo filosóficos envolvidos, dada a história da escravidão, do tráfico negreiro e da vida dos afrodescendentes nesta parte do mundo chamada Brasil. E aqui temos um claro exemplo da importância de evitar anacronismos na hora de pensar e de julgar, quer dizer, de evitar ou ao menos manter sob controle essa tendência, compreensível, mas nefasta, de julgar tudo pela régua do presente, ainda mais, acrescento, num presente tão dilacerado como o nosso.
Que impacto a condição de negro teve em sua vida? Como ele se relacionava com a negritude?
Luís Augusto Fischer — Subjetivamente, imagino que teve grande peso. Mas de fato acho que, a partir da juventude, Machado encontrou um caminho social, feito de seu trabalho pessoal tanto em sua condição de funcionário quanto em sua prática literária, tal que sua negritude não atrapalhou. Ao menos é o que se pode deduzir de sua obra ficcional e de sua atividade intelectual. Machado de Assis faz parte de um grupo restrito, mas existente, de afrodescendentes que tiveram ascensão social nítida, combinada com um relativo apagamento ou alívio dos ônus sociais que a condição negra impunha e impõe. Pelo lado físico, as várias fotografias em que aparece mostram uma imagem bastante encontrável no mundo português e luso-brasileiro: pele trigueira, cabelos ondulados. Não sou especialista no tema, mas ele não ostentava, nessas fotos, nenhum dos estigmas associados ao negro, como a pele escura ou o cabelo carapinha. Mas seus contemporâneos e alguns dos críticos de sua longa trajetória póstuma o diziam explicitamente mestiço, mulato. Assim se pronunciam figuras como Sílvio Romero e Lúcia Miguel Pereira , críticos importantes entre os machadianos.
Ao longo do tempo, houve uma tentativa de embranquecimento de Machado de Assis. De que maneira e por quê?
Luís Augusto Fischer — Seria necessário definir esse embranquecimento. Se com o termo quisermos designar um processo de secundarização ou de escondimento de sua origem afrodescendente, concordo que houve algo. Não lembro de isso ser enfatizado na escola ou em leituras dele antes dos anos 1980 finais, quando o tema da negritude começou, timidamente, a requerer espaço no debate crítico. De então em diante, isso não saiu mais do horizonte. Mas não devemos esquecer que esse mesmo processo tem seu lado muito interessante: Machado é um escritor de tal porte e vigor segundo as melhores réguas da tradição literária ocidental, que sua trajetória de crescente consagração de fato prescinde desse aporte, por um lado, e por outro se fortalece quando esse aporte é considerado, a meu juízo.
Até hoje, negros padecem com os efeitos do racismo estrutural que vige no país. A situação era mais grave ao tempo de Machado. Naquela situação adversa, como ele conseguiu ascender social e culturalmente?
Luís Augusto Fischer — Ele foi uma das exceções bem-sucedidas, que confirmam o clichê. Posso estimar a coisa, pelo que conheço do caso (sua biografia e sua obra), em alguns itens, que menciono sem ordem de importância: ele não carregava os estigmas físicos negativos associados à condição negra; ele era muito talentoso; ele era muito, mas muito trabalhador; ele validou sua obra (e, com isso, sua trajetória social) de modo muito paulatino, pondo o pé firme em cada degrau, em cada momento — por exemplo, na juventude tinha convicções democráticas iluministas, mas ao mesmo tempo bajulou dom Pedro II em poemas publicados; ele teve um casamento muito bem-sucedido e muito favorável para sua ascensão social — Carolina era portuguesa, branca, letrada (consta que foi com ela que ele aprendeu inglês e ganhou mais intimidade com a literatura inglesa, essencial para seu amadurecimento e seu desembaraço formal), de família bem posta socialmente, com largo contato com gente letrada lá em Portugal; ele parece não ter mantido relações com seus parentes negros, ao longo da vida, ou, se manteve algum laço, ele não foi registrado, nem causou qualquer constrangimento social. São alguns dos elementos que se pode observar.
Há negros e negras cujas trajetória ou produção não receberam o tributo merecido ou foram reconhecidas tardiamente. Machado é uma exceção, já que deve ser o escritor brasileiro mais pesquisado?
Luís Augusto Fischer — É preciso considerar que, respondendo esta pergunta e a anterior ainda, ele foi um sujeito gregário, um homem de letras também no sentido de frequentar, promover, incentivar, inventar grupos, associações, reuniões de letrados, não apenas naquela bem-sucedida invenção da Academia Brasileira de Letras — de que ele foi fundador e declarado presidente perpétuo! –, mas antes, desde sua juventude. Isso revela grande trato social, ligado diretamente à sua carreira literária. Antes de fazer 40 anos, antes de publicar sua obra mais madura (a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas e Papéis avulsos), ele já era reconhecido como um dos grandes, ao lado do Alencar , que é um sujeito que veio da elite letrada e política e tinha obra evidentemente consagrada antes de morrer (em 1877). Se compararmos esses aspectos com o que ocorreu com outros negros — pensemos em Lima Barreto, um sujeito com condições sociais iniciais muito melhores do que as do Machado (o pai do Lima era letrado, por exemplo), mas com trajetória complicada, doente (pelo jeito era adicto da bebida) e com temperamento polêmico e confrontativo –, o caso de Machado de Assis é ainda mais nítido em sua excepcionalidade. Tudo isso considerado num cara cuja obra é evidentemente superior, não esquecer.
Que tratamento autor e obra receberam durante a vida e depois da morte dele?
Luís Augusto Fischer — Em vida foi reconhecido e consagrado, com apenas uma exceção relevante, Sílvio Romero, um crítico que xingou Machado em vida, mas foi por este acolhido na Academia de Letras (mais uma prova da urbanidade de seu temperamento, eis que Machado teria, imagino eu, poder de vetar nomes na formação do grupo dos 40 imortais). E os ataques de Romero eram vistos como exagerados e mesmo como ridículos pelos melhores. Depois de sua morte, não houve período em que ele não tenha sido elogiado, com variações apenas de ênfase. Nos anos 1910 e 20, logo após sua morte, em 1908, havia uma certa perplexidade por não ser fácil dizer por que ele era mesmo excelente. O que se dizia então, e mesmo na geração seguinte, se voltava mais para seu humor, sua fineza de trato literário, sua erudição, sua visão nihilista, seu europeísmo etc. Quer dizer, ele era elogiado — digo eu aqui de longe — por não ter escrito sobre o Brasil real e cru, da pobreza, da escravidão etc. Quer dizer: Machado era bom, na visão da maioria dos letrados brasileiros, porque dava para mostrar para as visitas, para ostentar como um cosmopolita nascido aqui.
Na altura do centenário de seu nascimento, em 1939, houve uma grande mobilização: a Academia cresceu muito como instituição, com apoio de Getúlio, e promoveu uma grande exposição sobre sua vida e obra, e houve uma enxurrada de publicações, de estudos, uma coisa realmente impressionante, se levarmos em conta que ainda não havia estudos superiores de literatura (mal começava a existir curso de Letras, mas apenas para formar professores de escola, não para pesquisa). Neste momento a obra e a vida de Machado ganharam um destaque novo. Um exemplo bom é sua primeira biografia, por Lúcia Miguel Pereira, uma prestigiada crítica literária brasileira do momento.
Aqui no estado, jovens intelectuais de grande futuro, como Augusto Meyer e Moysés Vellinho, publicaram estudos sobre ele. Apareceram as primeiras análises mais focadas nos méritos literários específicos, as primeiras comparações de sua obra com grandes europeus (Dostoiévski e Proust). Mas seguia a ideia de que ele era um ausente dos temas brasileiros, como diz Sérgio Buarque de Holanda em passagem agora ridícula de Raízes do Brasil.
Na virada dos anos 1950 para os 60, há uma grande revolução, com leituras renovadoras pra valer, com a norte-americana Helen Caldwell à frente: foi ela a primeira pessoa a evidenciar aquilo que até então era tomado como trivial ou nem era percebido, a saber, a parcialidade (intencional e de grande efeito crítico) dos narradores de sua obra madura. Foi ela que chamou a atenção para o fato de que não dava para acreditar total e francamente na visão de Bento Santiago, o narrador (e suposta vítima de traição) de Dom Casmurro.
Em seguida apareceu a obra de Roberto Schwarz, que promoveu outra revolução ao demonstrar a força venenosa do ângulo de classe que Machado tinha dado a esses mesmos narradores, em particular Brás Cubas e o mesmo Bento Santiago. Com Schwarz, Machado passou a ser visto como o grande crítico da estrutura social brasileira, da escravidão e do favor. Mais recentemente, numa quarta geração de críticos, podemos encontrar uma enorme diversidade de enfoques nos estudos acadêmicos de sua obra, da psicanálise à sociologia, mas com uma forte presença de comparações com escritores de outras paragens — e Machado sempre sai muito bem dos confrontos.
Machado, reconhecido no Brasil como brilhante, não teve muita projeção no Exterior. Isso se deve ao fato de ele escrever em português, ser brasileiro ou ser negro?
Luís Augusto Fischer — Isso de ele não ter tido muita projeção precisa ser circunstanciado. Ele foi traduzido ainda em vida, mas sua dicção narrativa era realmente muito inovadora, de tal modo que suas melhores virtudes não apareceram imediatamente — ao contrário de nossos dias, quando ele está sendo traduzido e retraduzido, com grande impacto de leitura acadêmica e algum impacto de leitura geral. (Tenho uma tese sobre os motivos dessa trajetória torta, que expus em meu livro Machado e Borges. Em suma, o que dele se traduziu em sua vida foi basicamente romance, gênero que estava em seu auge europeu, com os russos, os ingleses, os franceses do século 19; o romance machadiano era muito esquisito para aquele leitor da virada do século 19 e só teria parentes em gente rara, como Henry James, seu contemporâneo, e em gente posterior, como Proust, Virginia Woolf, Conrad talvez. Por que não traduziram então seus contos? Esta é uma boa pergunta sobre o tema.) O fato de ter escrito em português é decisivo: nós somos nativos de uma língua que simplesmente não é lida fora do Brasil e de Portugal (e das ex-colônias portuguesas, relevantes é claro, mas de escassos leitores). Isso se agrava por ele ser brasileiro? Pode ser. Mas nada tem a ver com ele ser negro, creio, simplesmente porque esse tema não aparece nos primeiros planos de sua obra.
Em sua obra, questões étnico-raciais são tratadas de que maneira?
Luís Augusto Fischer — São escassas as passagens relativas ao mundo afro-americano, assim como ao mundo dos ameríndios, que é mais presente. Estes são discutidos de modo inteligente em sua crítica, porque a voga da literatura indianista foi forte no Brasil, desde o século 18, e Machado mesmo, como poeta, frequentou o tema. Sua visão acerca dos indígenas brasileiros reais, quer dizer, as populações indígenas, era acanhada; em 1873, ele fala na “raça extinta”, sugerindo que índios eram tema possível para a literatura, mas não faziam mais parte do mundo. Uma visão claramente distorcida pelo fato de Machado viver no Rio e nunca ter saído de sua cidade para além de uma centena de quilômetros (viajou a Barbacena e a Petrópolis, nada mais!). Já os afrodescendentes aparecem de modo esparso em sua obra — algumas crônicas em que expressa um grande ceticismo não em relação à Abolição em si, mas em relação à fantasia de que ela representaria uma libertação social adequada, passagens breves nos romances e um pequeno conjunto de contos.
Ele conviveu com a escravidão até quase seus 50 anos, mas é preciso precisar isso: ele conviveu com escravizados urbanos, não aqueles do mundo rural, e conviveu com a peculiar estrutura social brasileira, que previa uma boa quantidade de modalidades de alforria, que relativizavam a contundência direta da escravidão pura e simples, assim como conviveu com a mestiçagem muito generalizada, e essas características são cada vez mais reconhecidas como peculiaridades brasileiras, mais ainda cariocas. Quero dizer com isso que Machado não pode ser pensado como um insensível que não teria se compadecido com escravos do eito, com escravizados apanhando etc., coisas ambas que ele raramente deve ter visto ao vivo. Ele precisou, penso eu, afinar muito sua percepção e sua linguagem para poder dar conta dessas teias invisíveis da escravidão brasileira, que faz conviverem a brutalidade com a sutileza, a porrada com o favor. Então é preciso, enfim, ler em sua obra não apenas a presença direta de escravos submetidos a trabalhos físicos forçados, coisa que quase não há, mas sim o escravo doméstico, muitas vezes já mestiço, como aquele personagem paternal de Iaiá Garcia, Raimundo, escravo velho herdado por Luís Garcia, ou uma personagem como a Dona Plácida, de Memórias póstumas de Brás Cubas, não uma escrava, mas claramente uma mulher das classes subalternas, que se matava trabalhando para criar a filha e sustentar a mãe, até que ganha um emprego como gerente da casa em que Brás vai se encontrar com Virgília, sua amante. Nesses personagens se pode ver claramente quão profundo e sutil foi Machado na leitura da sociedade brasileira.
O romance Memórias póstumas de Brás Cubas pode ser considerado a obra mais delicada no que se refere à temática da escravatura, por apresentar Prudêncio, um negro que, ao ser liberto, compra um escravo para si?
Luís Augusto Fischer — Este Prudêncio é um caso especial, como disse acima, porque ele, na infância do Brás, é escravo doméstico que se submete aos caprichos de seu pequeno dono, e na maturidade, é visto na rua surrando um escravo que ele, Prudêncio, conseguira comprar. Ao colocar em cena essa figura, Machado olhava para um caso incômodo, em todos os níveis: um escravizado que conseguira não apenas se alforriar, não se sabe como (se por gentileza do dono, se por compra feita com dinheiro poupado por ele mesmo etc.), como ainda teve dinheiro para comprar para si um escravo. É uma cena perfeitamente dispensável para o enredo, mas acaba tendo destaque pela peculiaridade do caso. Noutros romances aparecem também escravizados, mas sempre como personagens secundários, quase como mera paisagem social.
Machado era um intelectual crítico e consciente dos abismos sociais da sociedade brasileira e da situação precária do negro? Como isso se traduzia?
Luís Augusto Fischer — Parte da resposta está acima. Mas há uma outra: foi justamente Roberto Schwarz, seguindo os passos de Helen Caldwell, quem nos ensinou a prestar atenção, em Machado, não apenas aos enunciados, mas aos enunciadores, aos que têm a palavra, e assim observar com clareza os que observavam o Brasil pela maestria de Machado. Um canalha como Brás Cubas, por exemplo, no capítulo final de “seu” livro, diz que graças a Deus nunca precisou comprar o pão com o suor de seu rosto — e isso é toda uma interpretação do Brasil: é o trabalhador Machado, que nunca teve moleza na vida, botando na boca de um filho da elite rentista uma frase como essa, que está no texto desde que ele existe, é claro, mas que nunca antes tinha sido destacada, porque no mesmo capítulo final o que se salientava era o nihilismo machadiano, que pela voz de Brás dizia que nunca tinha tido filhos, logo nunca tinha transmitido a ninguém o legado de nossa miséria. Aí está um bom exemplo da leitura da sociedade brasileira feita por Machado.
O fato de ser um burocrata do Estado, apadrinhado por personalidades influentes, entre eles o imperador dom Pedro II, poderia comprometer a expressão de críticas ao racismo e ao estado de coisas vigente. Isso explica o fato de ele assinar com pseudônimo as crônicas que criticavam a escravatura?
Luís Augusto Fischer — Os pseudônimos não existiam por motivos como este, de não querer assumir uma frase. Eles eram uma prática mais antiga, um drible elegante que a maioria dos cronistas usava, para despistar, para criar uma persona irônica longe do indivíduo etc. Mas sim, é possível concordar com a hipótese da pergunta, de que Machado não teria sido um crítico mais evidente, mais direto, mais claro, por conta de sua relativa proximidade do poder e, acrescentemos, por seu temperamento avesso a polêmicas, discreto, “low profile”. Machado era, me parece, um tipo inglês de temperamento e talvez mesmo de convicções ideológicas. Não foi um entusiasta da república porque, acho, não via com maus olhos a monarquia em si, desde que fosse constitucional e vivesse em paz com a liberdade de opinião e com um grau de relativa distribuição de renda. Em compensação, ele armou bombas literárias de efeito retardado que ainda hoje explodem!
Seria correto dizer que a militância negra não faz a Machado de Assis tributos similares aos dirigidos a outras personalidades brasileiras afrodescendentes? Por quê?
Luís Augusto Fischer — É isso mesmo. Em parte, essa ausência nasce já em Lima Barreto, que considerava Machado um ausente, quase um conivente com a exploração. Tanto bastou para muita gente, não apenas do movimento negro mais recente, mas também da esquerda em geral, por muito tempo, tratar Machado como um colaboracionista. Parece-me que agora o debate está mais maduro, e figuras do campo crítico do movimento negro, como Eduardo de Assis Duarte , se empenham em mostrar que Machado era negro, discutir temas relativos a isso, enfim é uma figura a resgatar.
Em 2011, em alusão aos seus 150 anos, a Caixa Econômica Federal veiculou na televisão uma propaganda em que Machado de Assis — que teria sido correntista do banco — era interpretado por um ator branco. O que esta caracterização indevida sugere?
Luís Augusto Fischer — Machado tinha caderneta de poupança na Caixa, e chega a mencionar a existência desse mecanismo financeiro em um conto seu. Essa história de terem escalado um autor digamos inequivocamente branco para representá-lo não é absurda, uma vez que Machado mesmo, como lembrei acima, se tinha na conta de branco, a ser verdadeiro o testemunho de Nabuco. Mas foi uma imprudência não ter pensando que nessa caracterização se perdia uma excelente chance de trazer essa ambiguidade, essa ambivalência à tona. De todo modo, o equívoco da escalação do ator revela muito de nossa relação ruim com o passado e o presente étnico brasileiro.
[Publicado originalmente na edição 517 da revista IHU On-Line, de 18/12/2017.]