Cubículos (In)visíveis— Da liberdade à criação.
O corpo, o eu e a cidade como parte do desenrolar de um projeto de Design Experimental.
Como é criar com liberdade?
Essa foi a pergunta norteadora do nosso primeiro encontro com o professor Anderson Penha — enquanto usava suas possibilidades dentro do ambiente digital para nos mostrar o quanto estamos condicionados a olhar apenas para dentro de nossos próprios cubículos.
Depois de quase dois anos vivendo uma pandemia, toda a experiência dessa (in)disciplina teve uma camada extra de reflexão que tentaremos compartilhar à altura nas próximas linhas.
Além das telas e da teoria
Fabricio Licursi — ator, bailarino e diretor de movimento — passou a ser um orientador e provocador. Trouxe a abordagem somática e uma aula que fez com que todas as pessoas vivenciassem seus corpos mesmo a um Zoom de distância. Durante uma hora de aula, nos conduziu por lugares que não havíamos visitado até então. De repente, todos sumiram da frente de suas telas e estavam entregues àquele encontro.
Depois de vivenciarmos esse preparo corpóreo, Clara Cecchini — Learning Innovation e atriz — nos conduziu para um mergulho nas artes e na performance. Passando por Pina Baush, Lygia pape, Les Slovaks, Marina Abramovic à Rosana Paulino, Hélio Oiticica e Maria Eugenia Tita, nos encheu de um outro tipo de repertório para que o projeto emergisse.
Corpo sensorial, mensagens do corpo, o que o corpo fala, sentimentos, insights sensoriais… Foram algumas das provocações que tivemos de responder para permitir com que a criação emergisse.
Se essa música fosse uma pessoa, quem ela seria?
Além dessa experiência contada acima, semanas antes tivemos a oportunidade de experienciar um ensaio etnográfico como pesquisa exploratória para o projeto.
A partir da música Fio de Prumo, do Criolo com Jussara Marçal, construímos de maneira intersemiótica um personagem referência: o Porteiro.
Essa persona nos permitira colocar em prática o processo de observação que acontece na Etnografia. Dessa forma, identificamos no comportamento humano de nosso personagem seus legitimadores e seus desajustes — que serão descritos adiante:
❌ Crise do cuidado
Ao legitimar que os porteiros continuam fazendo o mesmo trajeto para o trabalho, utilizando do transporte público — especialmente durante uma crise sanitária — e que passem por longos período no trabalho sentados, sozinhos, em um local pequeno e com pouca ventilação, pudemos entender o desajuste provocado pelo adoecimento dos corpos desses trabalhadores.
Caracterizamos isso como: crise do cuidado.
❌ O trabalho da espera
Encontramos uma crise da presença no excesso de conexão e falta de conjunção no dia a dia desses trabalhadores. Eles se conectam muito via redes sociais, com os moradores e entregadores. Mas não há uma presença conjuntiva no trabalho. É um trabalho repetitivo, alienado, solitário sem que eles consigam empregar sua individualidade.
Enquanto vivem imersos em um contexto do qual não fazem parte, apenas esperam. Ora são invisíveis, ora extremamente importantes. Caso não façam o que se espera deles, no momento exato, decepcionam.
❌ O limite permeável entre o público e o privado.
Os porteiros ficam nesse espaço entre a casa e a rua, entre os "corpos" e a cidade, tem um sistema complexo de relações emocionais e de trabalho com diversos moradores.
Essas profissões domésticas, em que o trabalhador pertence de algum modo à residência do empregador, são uma anomalia.
Termos ainda esse tipo de trabalho é o resíduo de uma sociedade escravista, que não valoriza o serviço. Uma sociedade apegada ao material. Para nós fica evidente que legitimamos esses comportamentos muito por Ethos, pouco por Páthos e quase que não encontramos Logos.
Por ser a maioria por Ethos, replicamos comportamentos desajustados e que propagam preconceitos com eles e não paramos para pensar nas condições do trabalho, muito menos nesses corpos.
Todo esse processo de descoberta e repertório nos deram base para explorar nossa liberdade e também a criar uma intervenção e os sentidos que desejávamos à ela:
Conexões entre os corpos e a cidade
Com tanta coisa na cabeça, começamos a explorar as possibilidades e conexões fora dela.
Foi então que começamos a analisar nossos corpos exercendo suas funções no trabalho. Olhando para os desajustes observados no estudo, nos pegamos dentro dos nossos próprios cubículos, com os mesmos sintomas de quem observávamos.
O que sentíamos? Como nosso corpo reagia a horas sentados, movimentos repetitivos? Que corpo é esse?
Imaginamos o "corpo porteiro" como um sistema sanguíneo do prédio. A sua principal função: gerenciar os fluxos. Certamente, quem gerencia fluxos precisa das válvulas para não colapsar. Uma das válvulas, a de escape - na nossa metáfora - chamamos de fé.
O cubículo seria então nossa célula sanguínea, assim como um vagão de trem ou um quarto de home office. Com energia, pessoas e movimentos — são esses cubículos capazes de manter a cidade viva.
Mas quem vive os espaços, de fato, são os corpos — esses mesmos corpos adoecidos, exaustos, desconectados. Chegamos à conclusão que somos como o oxigênio limitado a cubículos. Somos a parte viva dentro da cidade — mas também somos uma parte que precisa de ajuda.
O que é criar com liberdade, afinal?
Uma reviravolta, um cambar, uma mudança nos ventos da liberdade até aqui imaginada. Estávamos livres, até o momento em que descobrimos que nossa mensagem deveria ser transmitida através do TikTok.
Elementos como esse surgem de repente e, ao que parece, fazem parte da proposta do Design Experimental — mas é inevitável o desconforto.
Como experienciar a máxima liberdade nesse contexto?
Como desenhar Cubículos (in)visíveis dentro do cubículo mais visível de todos?
Primeiramente, imaginamos a rede TikTok como o experimento final — e então ficamos presos a ideia de publicar algo que fosse de acordo com que é comumente veiculado na plataforma.
Porém, nossa percepção passou a mudar quando incorporamos o ser experimental. E então, optamos por colocar alguns de nossos estudos na plataforma, explorando os limites do corpo através da dança — no ambiente físico — e da video arte — como ambiente digital.
O que acontece quando expandimos, de fato, o cubículo para fora da cidade? E se esse espaço físico causar, também, estranheza aos que passam, fazendo aquele espaço que existia invisível ali se tornar visível, incômodo?
Intervenção na cidade através do corpo
O Parque Minhocão em uma tarde de domingo virou palco para experimentarmos. Um quadrado, tablado, de madeira, tornou-se um cubículo possível. Uma bailarina interpretando a música de Criolo que deu início à nossa história, moveu-se livremente pelo metro quadrado que lhe propusemos. Os movimentos passaram a dar outro tom à nossa narrativa — tornando àquele cubículo finalmente, visível.
As pessoas passavam curiosas, mas sem interagir, olhavam, mas disfarçavam, desviavam. Tal qual a posição incômoda do porteiro que “não é para ser visto”, teria nossa intervenção gerado o mesmo impacto?
Ficamos lá por cerca de uma hora e as reações mais comuns foram pedidos de desculpas por passar no meio das filmagens, pessoas paradas olhando, eventualmente uma foto aqui e ali, mas, sempre, sem nenhuma intervenção.
Fomos embora dali ainda mastigando essa correlação entre o porteiro e a bailarina, correlação essa que ficou mais óbvia ao refletir em grupo sobre os resultados da nossa intervenção.
Intervenção digital
Dotados de um material riquíssimo, pensamos, mais uma vez, em realizar mais um experimento, só que agora num ambiente digital. Por que não explorar outras imagéticas e possibilidades para causar a experiência de nos perceber em nossos cubículos?
Com essa pergunta, horas de planejamento, momentos de encenação e muito ensaio, decidimos, por fim, levar o nosso questionamento que teria nos guiado até lá:
Será que sabemos os cubículos que habitamos?
Nasceu assim um texto reflexivo onde entramos mais a fundo na relação entre o corpo e o indivíduo, o indivíduo e o outro e, então, o corpo e a cidade.
Sensações e imagens, vídeos e vozes se misturaram às de nossas câmeras projetadas num plano aberto, fora do que estamos acostumados nesse tipo de ambiente. Fomos apresentados como indivíduos observadores, ao invés de observados.
O olhar olhando o outro, ao passo que o outro olhava para si mesmo.
Por fim, convidamos todos os ali presentes para poderem ver, agora sob uma perspectiva diferente — a performance no minhocão mas, dessa vez, através da transmissão ao vivo de sua projeção em um prédio da Santa Cecília.
Deixando o seguinte convite: que tal vivenciarmos nossos cubículos da perspectiva da cidade?
Durante a jornada, pudemos sentir nossos corpos de um jeito diferente. Uma espécie de sinestesia "pós"-pandêmica.
Sentir, através da audição, todo o ritmo que Criolo e a experiência etnográfica nos conduziu, passando pela percepção do eu e do corpo para que, no fim, nossos cubos pudessem ser presenciados e vistos por toda a cidade.
Esse questionamento ainda reverbera por aqui e esperamos que com a história contada nesse artigo você também possa se permitir a viver seus espaços, seu corpo, sua cidade e, principalmente, a total liberdade da criação.
Conectados (via zoom e com nossos próprios corpos e espaços) encerramos esse artigo e esta (in)disciplina já morrendo de saudades.
Até a próxima.
Alunos da pós graduação de Design Estratégico de Inovação do @iedsp
Lucas Navarro, Malu Lasaro, Jose Campos & Vivi Tavares.