Vida de Gado (conto)

Victor Muniz
3 min readJan 19, 2016

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(Author's note — the english version of this short story can be found here)

Acordou, se é que tinha dormido. A campainha com som de enxaqueca o despertou do transe em que estava. Era difícil dormir naquele espaço apertado, com o constante zunido das lâmpadas fluorescentes fritando seus pensamentos. Ali, salvo pelas pequenas janelas gradeadas e rachaduras nas paredes, era praticamente impossível distinguir o dia da noite, um dia ensolarado de uma tormenta; para os animais que ali viviam, o tempo era controlado pelo som de enxaqueca, as estações pelo vento artificial e ineficiente dos ventiladores quebrados, que mais pioravam a situação do que ofereciam conforto.

Já fazia tempo desde aquele dia, ou pelo menos, era essa a sensação. Não fizera nada, apenas estava no lugar errado, na hora errada, e o mais importante, era da cor errada; levou uma pancada na cabeça de um homem vestido de cinza e azul, que brigava na rua por dinheiro enquanto ele segurava algo que um amigo de infância lhe pedira para guardar, achou que não fazia mal, mas seu coração tremia ao pegar o pacote branco em suas mãos. Levou a pancada, acordou olhando para um sol branco e pela primeira vez, aquele zunido tomou seus tímpanos.

Nasceu livre, filho de um homem trabalhador, honesto e que, como ele, estava no lugar errado na hora errada, e de uma mulher forte e decidida que o criou sozinha e pedia todos os dias a seus santos para que o filho tivesse escola, fosse um doutor. O menino, inteligente que era, até entrou na faculdade sim, mas os tempos eram difíceis e logo lá estava ele, parte da massa trabalhadora do País Tropical. Sua mãe lhe dera um nome no batismo: Severino.

Mas lá dentro, Severino não existia: nomes eram roubados, se tornavam números; lá dentro, Severino era 24601, preso em flagrante por porte de entorpecentes ilegais. A verdade é que o homem a quem pertencia a droga que “era de Severino” morreu queimado e jogado em uma vala um ano depois da prisão, mas o papel que provava a inocência dele se perdeu em meio a tantos outros e ele lá ficou, pois, afinal de contas, pelo bem de uma cidade utópica e dos bons costumes de seus melhores cidadãos, era melhor que um marginal como 24601 ficasse um bom tempo na prisão.

Os dias eram monótonos, e as noites eram iguais. Para fugir da loucura, ele escrevia em um velho caderno que conseguiu com o Padre que os visitava de quinze em quinze dias, já tinha muitas páginas prontas. Achava que ao transferir seus pesadelos para o papel e ficar acordado, não teria de dormir e vivê-los dentro de sua cabeça ou enlouquecer como já tinha visto acontecer com outros presos. Pouco após o almoço, quando era servida uma mistura com gosto de náusea, havia a hora de sol dos prisioneiros, mas que para os olhos de 24601, era uma hora que mais parecia um desfile de gado, com homens truculentos e cabisbaixos andando em círculos repetidamente para passar o tempo. Para uma mente antes ativa e livre como a dele, aquilo era pura tortura.

A cada dia, vinham mais dezenas como ele: jovens assustados com o coração palpitante, que olham para os olhos machucados dos outros prisioneiros e temem por suas próprias vidas. Sentia pena deles, pois sabia que poucos ali tinham uma data certa para sair das jaulas e respirar livremente, a grande maioria estava fadada a esperar pela boa vontade de alguma pessoa que nunca tinham visto e para quem, aquelas pessoas não tinham nome ou rosto, apenas um número e uma pasta para cada um: homens sem face.

24601 temia ainda mais pelos mais novos que eram condenados, crianças que logo seriam seduzidas pelas palavras de poder que ecoavam da boca dos mais velhos, palavras de ódio e vingança que preenchiam seus pequenos corações cada dia mais vazios do amor de suas mães, pais, avós, irmãs, irmãos ou namoradinhas. Um menino que alí entrasse sairia um animal selvagem e violento, mas isso não importava para os bons cidadãos, pois nada viam. 24601 rezava por eles todas as noites depois de escrever mais algumas páginas.

Agora ele está lá, escrevendo, esperando a noite passar ou até ele cair no transe novamente; dentro dele ainda há a esperança de ver sua mãe de novo, e essa esperança é alimentada todas as manhãs por um pequeno Bem-Te-Ví que se empoleira em uma janela quebrada e espalha seu canto por aquelas jaulas. Ele ainda sonha com sua justa liberdade, só queria que alguém visse sua realidade, visse seus pensamentos.

Aí vem o som da enxaqueca novamente.

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