Foto: arquivo pessoal

Um mutante em Brasília

Vítor de Moraes
7 min readNov 10, 2016

Cidade abriga o curioso morador autor de música gravada pelos Mutantes

Em uma manhã de quinta-feira, Wandler, em pé sobre um banco de madeira, tenta encaixar a parte frontal do ar-condicionado. Ele acabara de abrir as portas da luthieria que tem no Sudoeste Econômico, espremida entre tantas lojas de diversos segmentos. Cercado por violões inacabados e quebrados, ele reclama do calor e da dificuldade com a peça.

A habilidade com aparelhos de ar-condicionado passa longe das mãos de Wandler Cunha. Os dedos do amazonense se dedicam há décadas às cordas. Depois da insistência, Wandler liga o eletrodoméstico. Ele desce do banco e apresenta o ateliê. “É o lugar mais sujo do mundo que eu mais amo”, desculpa-se. Para quem trabalha mais de 12h por dia, a sala é até bem limpa. Um pouco apertada, é verdade.

Quem passa pela CCSW 5 vê Wandler com certa frequência debruçado sobre algum instrumento no balcão de madeira. A franja, herança dos anos 1960/1970, vez em quando é jogada para o lado direito. Depois de ligar o ar-condicionado, ele aponta para um banco de plástico, sem encosto. “Senta aí”, oferece.

Foto: Vítor de Moraes

Wandler confere o celular antes de começar a relembrar um episódio que o faz um curioso habitante brasiliense. “Faz mais de 40 anos, e até hoje me perguntam sobre isso”, adianta.

Ele, no entanto, não se cansa de contar. Pudera. O amazonense integra a minúscula lista de artistas regravados pelos Mutantes — nela, por exemplo, está Caetano Veloso. Jogo de Calçada, eternizada no álbum A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, saiu das mãos de Wandler. A letra é do parceiro Ilton Oliveira.

Wandler tinha 21 anos. Era 1969, e Joaquim Marinho, agitador cultural e representante da gravadora Polydor no Amazonas, organizava o Festival Estudantil de Música Popular Brasileira, em Manaus. No ano anterior, Wandler havia ficado com o terceiro lugar.

“Havia poucos compositores em Manaus, não tinha uma gravadora lá. Eu mesmo não compunha até então, até descobrir esse submundo da música”, lembra. À época, ele tocava guitarra na banda Os Embaixadores. Ilton Oliveira, aficionado por poesia, levou até Wandler uma letra. O sol ia, a lua vinha na rua de doce, dizia o primeiro verso.

Na efervescente década de 60, auge da psicodelia, essas palavras não representavam nada além. Nenhum sentido escondido. Ilton estava na Avenida Getúlio Vargas, onde morava em Manaus. Crianças jogavam bola na rua, e as nuvens negras pairavam sobre elas. “Ameaçava cair aquela chuva, sabe? Um pingo molhava você inteiro”, exagera Wandler.

Foram necessários 15 minutos para encaixar uma melodia na letra. “É dessas coisas que estão no ar e você pega”. Ele se inscreveu no festival, e Os Embaixadores emprestaram o equipamento. As memórias — também as físicas — daquele dia são escassas. O vencedor do festival, Wandler não lembra quem foi. Ele ficou em segundo, com Jogo de Calçada, e voltou para o palco. Os melhores reapresentavam suas músicas.

Quando terminou e rumou para a coxia, foi chamado por Joaquim Marinho. Embora estivessem terminando de mixar o terceiro disco, Os Mutantes não eram muito conhecidos em Manaus. Para Wandler, porém, eles tinham “a mesma importância que os Beatles”. Ao se aproximar de Marinho, ouviu um pedido que mudaria sua vida: Sérgio Dias queria conversar com ele.

“Ôrra, meu, a gente gostou da sua musiquinha. Podemos gravá-la?”, imita o amazonense, forçando o sotaque paulista do mutante.

Faltava uma música para o álbum ser finalizado. E Os Mutantes queriam Jogo de Calçada. Rita Lee e Arnaldo Baptista estavam por ali, mas não tiveram contato com Wandler.

Por intermédio de Marinho, Wandler mandou uma fita K7 pelos Correios ao grupo paulista com a faixa gravada. Dias depois, Arnaldo Baptista pediu para trocar “cinco palavrinhas” da letra e acabou tornando-se coautor. No ano seguinte, em 1970, o disco foi lançado. Por meio da assessoria de imprensa, Arnaldo lamenta não se lembrar do episódio (em 1982, ele caiu do terceiro andar de um hospital e se feriu gravemente).

Depois disso, eles não se falaram mais. Até julho deste ano. Os Mutantes vieram a Brasília para quatro shows no teatro Caixa Cultural. Era a oportunidade para Wandler encontrar Sérgio Dias, o único remanescente da formação original. O amazonense conseguiu acesso ao camarim. Ao chegar à sala, encontrou Dias estatelado em um sofá.

Mais de quatro décadas haviam se passado, e dificilmente Sérgio reconheceria o autor de Jogo de Calçada. “Cheguei falando que ele poderia não se lembrar, mas que eu era o Wandler, da música tal, do disco tal”, conta. “Ele pensou por uns segundos e perguntou ‘ôrra, meu, aquele cabeludinho?’”, diverte-se o amazonense, novamente imitando o sotaque do ídolo.

Desde o lançamento de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, o “cabeludinho” não se preocupou com seus direitos. Fazer parte da história d’Os Mutantes, para ele, bastava. Há pouco tempo, Wandler recebeu uma ligação. “O rapaz falou que era de uma gravadora, queria meu CPF, meu endereço. Achei que fosse trote”, narra. Até que cerca de R$ 1.480 foram depositados em sua conta. Eram os direitos de gravação da música. “Deu para fazer umas compras no supermercado”, ri.

Wandinho dos Mutantes

Em 1988, em meio à aprovação da Constituição Brasileira, Wandler Cunha chegava a Brasília. Três anos antes, o guitarrista fora contratado pela então Radiobrás, hoje Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A esposa do amazonense, Lêda Maria, havia morado durante nove anos em Brasília e não conseguia se adaptar a Manaus.

Pintou uma vaga na capital federal, e Wandler pediu transferência. “Dez dias depois, eu estava de mudança”, recorda. Lêda, então funcionária da Eletronorte, veio quatro meses depois. Apesar da vida nova, Wandler veio com o coração partido.

Não havia três meses, ele e alguns amigos formaram o Clube da Beatlemania, um tributo aos Fab Four. Wandler fazia as vezes de George Harrison. Eles só não reproduziam a indumentária liverpoolniana. “Com aquele calor filho-da-mãe, não tinha como botar a beca”, graceja.

Wandler (e), com o Clube da Beatlemania (Foto: arquivo pessoal)

Enquanto estava sozinho, ele morou na 104 Norte. Depois da chegada de Lêda, o casal passou por Guará, Núcleo Bandeirante, Samambaia e Sudoeste. Hoje, os dois moram em Águas Claras.

O amazonense veste o crachá da Radiobrás/EBC há 31 anos. Analista de notícias, Wandinho dos Mutantes, como ficou conhecido em Manaus, trabalha ao menos 12h por dia. Ele sai de madrugada da empresa pública, dorme poucas horas e dirige até o Sudoeste para imergir na música.

Apesar da “condecoração” como autor de uma canção gravada pelos Mutantes, Wandler só registrou uma faixa autoral depois do encontro com Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee. “Tenho, no total, umas 10 músicas. Nunca tive muito tempo para investir nisso, nunca quis ganhar dinheiro com música. Sempre foi diversão”, justifica.

Em Brasília, Wandler teve dois filhos: Marcelo e Yana. O primeiro, aos 29 anos, toca baixo no cover mais conhecido de Brasília, o Let it Beatles. Aos 13, Marcelo largou o videogame e pediu ao pai que o ensinasse a tocar violão. “Ele me incentivou muito a ouvir e tocar rock e pop dos anos 50, 60 e 70. Depois de alguns meses, eu quis mudar para o baixo elétrico, e ele me botou para fazer aula”, recorda Marcelo.

O garoto, anos depois, estudou na Escola de Música de Brasília, fez licenciatura em música na UnB e almeja integrar uma orquestra. “Ele veio me contar sobre essa música um tempo depois, e eu achei superlegal. Quando eu estava com um pouco mais de desenvoltura, aprendi a música, e sei tocar a linha do baixo dela até hoje”, enaltece.

Yana, 20, quer ser designer. “O negócio dela é desenhar”, orgulha-se, também, Wandler.

Wandler encontra Sérgio Dias em Brasília (Foto: arquivo pessoal)

Uma vez por ano, o compositor reúne alguns amigos para tocar durante o dia inteiro. São assim suas comemorações de aniversário. No início dos anos 2000, ele se apresentou em bares da cidade, mas cansou. Veio, então, a ideia de fazer um curso de luthieria. Ele queria construir uma guitarra de 12 cordas semelhante à de George Harrison. O hobbie virou profissão.

Pouco mais de 1h de conversa depois, peço a Wandler uma lista com suas cinco músicas preferidas d’Os Mutantes. “A primeira, claro, é Jogo de Calçada”, gaba-se. Logo em seguida, ele vai até uma pilha de CDs e acha Mutantes, o segundo da discografia dos paulistas. Eles estão sempre com Wandler.

O luthier pega uma de suas seis guitarras e, com ela desplugada, começa a tocar a introdução de Jogo de Calçada. “Eles não mudaram nada da harmonia”, assegura. Não há nenhum registro daquele festival em Manaus. A música original, o tempo também levou. Mas a história está completa na memória de Wandler, sempre disposto a repeti-la.

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