Capoeira e política?
Resistência à escravidão é, objetivamente, luta política.
Dentre todas as teorias a respeito da origem da Capoeira, um fato não enfrenta discordâncias: seu surgimento se dá como meio de enfrentamento e resistência aos abusos e perseguições que escravos africanos e seus descendentes sofriam em território brasileiro. “Capoeira angola, mandinga de escravo em ânsia da liberdade…", Já dizia o mestre Pastinha.
A escravatura estava amparada nas leis do império e até em cartas papais. A política econômica do país, durante muitos anos, teve em seu cerne a prática escravagista. Logo, rebelar-se contra senhores, capatazes, oficiais e contra a escravidão de modo geral, significava contrariar a lei, a cultura e a política vigente. [É curioso observar que, em qualquer escola ou grupo de Capoeira do mundo, soa natural a ideia de que nossa prática surge em resistência à escravidão e suas leis, ao mesmo tempo em que se tenta dessociar ou desnaturalizar a cultura da capoeiragem dos ideais de rebeldia, posicionamento e enfrentamento político, seja no passado ou na atualidade. É como se tentassem separar o ovo da galinha.]
Ainda durante o império, é sabido o envolvimento das Maltas com políticos e seus partidos durante os processos eleitorais. Os capoeiras interviam com violência e ameaças, tentando reverter resultados desfavoráveis aos que simpatizavam ou lhes contratavam. Pesquisadores como Carlos Eugênio Líbano Soares, apontam que tais atividades eram movidas por motivos ideológicos, não apenas por relações comerciais ou manipulação. Sem entrar no mérito da natureza destas escolhas, fica evidente o envolvimento com o processo político também durante a era das maltas cariocas.
No Código Penal da República, de 1890 a 1940 a capoeiragem esteve proibida. Sendo assim, a prática de Capoeira durante este período se configurava ilegal, clandestina ou vigiada(na década de 1930, a prática desportiva em recintos fechados, com alvará de polícia, passa a ser tolerada). Mesmo assim, podemos observar durante aqueles anos, diversos fatos e eventos seminais para a configuração da capoeira praticada na atualidade.
Segundo o próprio M. Pastinha, ele esteve lecionando de 1910 à 1912, na Rua Sta. Izabel.
Em torno de 1922 os mestres velhos da Gengibirra já se organizavam no intúito de fundar o que posteriormente viria a se tornar o C.E.C.A. Em 1936 foi feita uma outra tentativa, quando da organização do II Congresso Afro-Brasileiro, na Bahia.
Mestre Bimba fez diversos esforços diplomáticos e estabeleceu o diálogo com militares e políticos em prol da descriminalização. Estrategicamente, levou a capoeira para outras classes sociais, mais abastadas e influentes. Por fim, consegue uma autorização e abre sua academia em 1937.
Diversas evidências apontam a simpatia de Bimba pelos ideais e sua próxima relação com o Partido Comunista e seus membros. Fruto de sua extrema aversão às injustiças sociais. Através de Jair Moura, seu aluno formado e membro do partido, aconteceram na sede no Nordeste de Amaralina, reuniões, palestras e inscrições de simpatizantes. Inúmeros militantes comunistas frequentaram a fazenda nessas ocasiões. Dentre eles Carlos Marighella.
Na biografia Carlos Marighella: O homem por trás do mito, Bimba é citado como seu amigo. Tendo lhe ensinado a nunca machucar ninguém, salvo se fosse necessário.
O que estes mestres fizeram ao resistir em certa clandestinidade, se posicionando, persistindo, lutando por liberdade e respeito, não tem outro nome senão fazer política. Não fossem esses esforços, frutos de uma ideologia libertária, consciência racial e de classe, talvez não houvesse Capoeira sendo praticada hoje.
A própria movimentação para que a Capoeira viesse a ser reconhecida pela ONU como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade é uma prática política.
Não devemos confundir com política partidária. Esta é apenas uma das milhares de possibilidades do fazer político. Existe a luta abolicionista, trabalhista, indígena, operária, pacifista, etc. Existem os movimentos negros, feministas, dos trabalhadores sem-terra, de vítimas de tragédias, de vítimas de violência do Estado, etc.
Obviamente, o capoeirista não precisa praticar ou se interessar por política. Não é esta a intenção por trás desta reflexão. Seria incorreto fazer tal afirmação diante de um número tão grande de praticantes desta arte ao longo dos anos, em suas mais diversas personalidades individuais. Assim como os fatos apontam que é incoerente afirmar que Capoeira e política não se misturam.
O que consideramos fundamental é não esquecer porque e por quem a Capoeira foi "criada". Não esquecer a natureza dos atos que salvaguardaram os capoeiras e a Capoeira no passado. E que, ao menos, não se censure aqueles que, como os primeiros, ainda lutam por ânsia de liberdade.
Haley Guimarães
REFERÊNCIAS E INSPIRAÇÕES:
A Capoeira Escrava — 2º Edição 2004 — Soares,Carlos Eugenio Libano — UNICAMP
Manuscritos de Mestre Pastinha — Org. Greg Downey e Frede Abreu
Jogo de Discursos. A Disputa por Hegemonia na Tradição da Capoeira Angola Baiana — 2013 — Paulo Andrade Magalhães Filho — Edufba
Capoeira Regional a Escola de Mestre Bimba — Hellio Campos — Edufba
Ele Não Joga Capoeira, Ele Faz Cafuné — Sergio Fachinetti Doria — Edufba
Capoeira: A Era das Academias, 1930–2010 (Trilogia do Jogador Livro 3) — Nestor Capoeira
Mitos, controvérsias e fatos: Construindo a história da capoeira — 1998 — Luiz Renato Vieira & Matthias Rohrig Assunção
O Inicio da era das academias 1930 -1960(?) — Cinézio Peçanha Mestre Cobra Mansa.
Viva Mestre Moa do Katendê!