criança viada

wadson leles
4 min readJun 22, 2020

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autor desconhecido por mim

Eu não me descobri gay, avisaram me. Bem assim, como quem avisa que vai chover ou lê o futuro em cartas de tarô. Carreira certa. A primeira vez foi aos 4, quando todo pano virava peruca, a cor vinha pela imaginação. Dono de certo rebolado, aos 5 já se sentia como Sandy e cobiçava o batom da mãe que dava brilho pra boca. Tolhido por qualquer familiar, era feito cão que tentava escapar dos limites da coleira. Nesse tempo, aprendi que existem coisa de meninos e meninas. No susto, como quem foi furtado. Sem muito cenário o melhor palco era mesmo armário da mãe, ali em segredo de plateia miada. Felicidade clandestina. Sem muito tardar a escola. O sinal tocava e era hora do recreio, cenário de guerra pra qualquer criança “fora do meio”. Seria boa ideia falar sobre a Xuxa? Ou sobre a sereia Iara? Pensava. Depois da primeira rasteira tive dúvidas a respeito. Com o empurrão veio o abraço mais forte ao chão bem como a certeza do não. Às vezes era difícil acreditar na minha capacidade de manter-me em pé. Mas ainda esperava que algum daqueles auto denominados “meninos lobos” me escolhesse para formar o time deles no futebol, mesmo sem qualquer habilidade de chute. A separação da matilha veio com o cuspe na cara — ainda me impressiono ao lembrar da saliva se projetando por baixo da língua e acertando em cheio o meio dos olhos, a visão era de um lançamento de foguete. Coisa que a humanidade demorou milênios para conseguir. Antes mesmo do tempo acabar eu levava cartão vermelho da professora, ainda que no banco de reservas. Eu tinha que aprender a jogar naquele time.

Quando Sandy e Junior se separaram tive que encarar um momento difícil, eu já não podia ser a Sandy. O Diego do RBD era um bom disfarce pra um desejo de fundura: ser a Roberta. Como eu invejava aquele cabelo vermelho. Nessa época, começaram a aparecer nomes artísticos. “Viadinho” era frequentemente usado. Não sabia donde viam, mas dalguma forma queimavam o céu da boca. Com a boca esponjada, faltava resposta. Hoje a gente chama de “haters”. Minha mãe já se colocava preocupada com minha carreira. As tias comentavam “anda rebolando, né?”; “e essa mão desmunhecada?”; “dança que nem menina, né?”. Ainda na escola, fiz que atuei em algumas versões não lançadas de alguns filmes. Tais como, “Bicha, corra se puder”; “Clube da luta” versão estendida contra crianças afeminadas, “kill bichinhas”… Nunca foram avaliados pela crítica especializada.

Na igreja, o momento era de busca por novos nortes. Quem sabe ser o varão enviado pelo divino nalgum dia. Até que me vi em cima do palco ao som de Aline Barros, junto com o grupo de dança. A sensação era: 500 graus de puro fogo santo e poder. Em breve o pastor lançava mão da participação dos garotos dançarinos. Mas, ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte não temeria mal algum. Daí veio minha participação no coral. Com a voz sem muita maturação, marcada pela recente puberdade foi mera figuração. De acordo com o professor de canto diria: sem talento. Eu que não era de crente de testemunhar muitos milagres, orava em campanha constante que me livrasse daquele mal que tanto que tanto pregavam. Me colocavam numa cruz todos os dias e a cada manhã eu tinha que migrar pelo deserto de paz. Certa vez, o pastor frente a todo o corpo de cristo anunciou a tramoia maligna do diabo em minha vida e que daquela noite em diante eu estaria liberto. Com a cara em temperatura vulcânica, eu disse: Amém!

Nesses dias, o pai lia alguma passagem bíblica sobre como deus criou homem&mulher. Agradecia pelo pão e rezava por qualquer misericordia. E desde muito menino me diziam que eu era viado então eu era viado, um terceiro ser. Existia sempre uma estranheza no corpo e na fala que era refletido no olhar do outro. Vez ou outra eu era pego feito animal de caça com perguntas: “por que você não muda?”; “já tentou ser diferente?”; “você gosta de meninos ou meninas?”. Eu sentia a paralização múltipla dos órgãos. Era uma repressão ao feminino, contra a minha performance e contra quem eu era muito mais do que quem eu iria me relacionar. Ser gay aconteceu aos 16, nisso eu já não mais ouvia Sandy, já não usava pseudo perucas, tinha minha própria matilha de lobas e não precisa mais de armários. Até então eu não era “viado”. No interno, existia um sentir diferente, algo feito semente. que dá flor cortaram o talo, mas que era apenas a criança que fui. Ou melhor, a que pude.

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