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Uma carta para quem vive, viveu ou vai viver o pior ano da sua vida

Willian Rocha
12 min readMay 20, 2020

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Artigo publicado originalmente no LinkedIn em 18 de setembro de 2018.

Já se passava das onze horas da noite de sexta-feira, e eu ainda estava trancafiado na sala de reunião com meu ex-sócio tentando encontrar uma luz no fim de um túnel sem saída. Comecei a passar mal e enquanto eu vomitava no banheiro, senti que estava evacuando ao mesmo tempo. Naquele momento, meu mundo desabou. Senti que minha vida, minha saúde e minha dignidade estavam indo para o ralo. Nunca me senti tão impotente e com tanto medo do que vinha pela frente.

É… 2011 foi o pior ano da minha vida. O fato de 2011 ter sido ruim não quer dizer que os outros anos foram fáceis e tranquilos. Vou tentar resumir como a vida me levou até a beira de um grande abismo.

Não dá para falar da minha vida sem falar da vó Hilda. A pessoa mais inteligente que eu já conheci, e o mais incrível, nunca soube escrever o próprio nome. Com ela eu aprendi que inteligência não tem nada a ver com estudo, inteligência é você saber tratar as pessoas com respeito e gentileza. E caráter é fazer a coisa certa até quando ninguém está olhando.

Meu pai saiu de casa quando eu tinha 10 anos. Foi aí que as coisas começaram a ficar mais complicadas do que já eram. Alí eu vi minha mãe perder o chão, o rumo e o caminho da vida. Ela sempre precisou ter alguém para ser seu porto seguro. E foi quando nossa relação mudou, ela projetou em mim a pessoa que ela precisava ter como porto seguro. Eu precisei amadurecer mais rápido que meus amigos, uma vez que eu precisava “cuidar” da minha mãe, que passava por sérios problemas emocionais.

Foi na Cidade Alta que eu conheci a violência nua e crua das favelas cariocas.

Logo após a separação, minha mãe decidiu se mudar para a Cidade Alta, uma das maiores favelas do Rio, onde ela cresceu e minha vó morava na época. Era uma forma de ficar mais perto das pessoas que se importavam com a gente.

Mas foi na Cidade Alta que tudo desandou de vez. Apesar de receber pensão do meu pai, minha mãe sempre buscava complementar o orçamento fornecendo salgados para bares e padarias do bairro.

Foi na Cidade Alta que eu conheci a violência nua e crua das favelas cariocas. Era noite de Baile Funk, eu fui para a rua dar uma volta e encontrei com o Negão Davi. Sorridente, ele estava apertando um baseado quando dois caras da boca apareceram e o chamaram para o beco, para conversar. Assim que entraram no beco, disparam contra o Negão Davi e mataram ele ali, a 20 metros de mim. Eu fui a última pessoa que falou com ele antes de ser assassinado. Mataram aquele menino por ter dívidas na boca de fumo.

Quando eu cheguei em casa totalmente desorientado e contei o que aconteceu, ouvi da minha família que todo mundo sabe o destino de quem deve à boca de fumo. Naquele momento, senti uma forte vontade de chorar e decidi tomar banho só para chorar sozinho, sem ninguém perceber minha tristeza por ter presenciado tamanha brutalidade.

Eu já ganhei muitas discussões, só ficando calado.

Eu preciso confessar que tenho dificuldade de chorar na frente das pessoas até hoje, parece que fui programado para não sentir emoção. Quem vive no morro aprende desde cedo que “se você chegar em casa chorando porque brigou e apanhou na rua, vai levar uma surra para chorar com vontade”. Hoje eu trabalho diariamente para ser mais emotivo e menos violento, não no sentido de querer resolver algumas questões no soco, mas de controlar a minha enorme vontade de revidar as porradas que a vida me dá. É muito difícil mudar isso, pois fui programado para agir no melhor estilo “bateu, levou”. E agora, meu amigo, estou aprendendo a segurar meu ímpeto e engolir os sapos calados, ao invés de reagir. Eu já ganhei muitas discussões, só ficando calado.

Quando completei 19 anos, minha mãe decidiu morar em Vila Velha, no Espírito Santo. Ela já estava cansada da violência, da falta de perspectiva de uma vida melhor, e, também, pelo fato da minha irmã estar namorando um moleque da boca de fumo. Da mesma forma que minha vida virou de cabeça para baixo quando meu pai saiu de casa, estava acontecendo novamente uma mudança que iria impactar diretamente meu futuro.

Eu pedi para minha mãe ir com minha irmã ficar perto da outra parte da família, e pedi para meu avô paterno para morar com ele por um tempo. Nessa mesma época, eu trabalhava como office boy da Funarte e havia uma grande possibilidade de ser promovido para atuar na área comercial. Minha sorte é que, depois de algumas conversas com meu coordenador, ele concordou em aumentar meu salário o suficiente para morar sozinho na Cidade Alta e fazer uma faculdade.

Os anos na faculdade foram ótimos, nunca tive tanta gana e sede de aprender algo. Decidi estudar Propaganda e Marketing na Estácio, onde conheci o Rafael, que futuramente veio ser um dos melhores amigos e sócio.

Era janeiro de 2008, um mês após eu me formar na faculdade, e decidi empreender com o Rafael, em uma época onde não havia a glamourização das startups. Como quem não tem nada a perder, decidimos criar a Agência Worm, primeira agência de Marketing de Guerrilha do Rio de Janeiro, muito inspirada na Espalhe. Nessa época eu tinha emprego normal como assistente de marketing na Funarte durante o dia, e à noite fazia um segundo turno cuidando das ações de marketing de guerrilha dos pequenos clientes que atendíamos.

E assim foram meus dias, por muito tempo, dias muito difíceis, até que em um determinado momento conseguimos ter um número de clientes suficiente para pedir demissão do emprego normal e me dedicar apenas à agência.

O que eu não imaginava é que, um ano depois de me formar e abrir minha agência, eu estaria sendo contratado pela universidade que me formou para uma consultoria de marketing em seis capitais.

Fazer esse projeto para a Estácio me fez realmente acreditar que estávamos no caminho certo. Os anos de 2009 e 2010 foram de crescimento e maturidade da agência. Estávamos surfando uma ótima onda. Foi uma época tão legal que trouxe minha mãe para morar comigo.

Alguns clientes decidiram lançar um site de compras coletivas e nos convidaram para ser sócios. Decidimos embarcar nessa loucura e lançamos o site no boom das compras coletivas. Entre fazer a agência rodar e o site decolar, faltou mão e maturidade. Voltei para uma rotina de 14h de trabalho por dia e, o pior, era um mercado que eu e meu ex-sócio não conhecíamos.

Depois de 7 meses no ar, já em 2011, com muito prejuízos, processos de consumidores na justiça e presença ilustre na lista negra do PROCON, me vejo na fatídica cena do banheiro, que relato no início do texto. Confesso que ali, naquele momento, eu senti uma enorme vontade de chorar, me senti impotente com a situação que estava vivendo e perdido entre tantos problemas.

Nessa época, eu me sentia tão perdido que sentava no chão do box, ligava o chuveiro e ficava ali sentado, pensando o que eu poderia fazer da minha vida. Era como seu eu me trancasse no meu mundo, fugindo dos problemas.

Só que 2011 veio para arrebentar comigo. O site faliu, e canalizamos mais energia, tempo e dedicação, para tentar fazer o negócio rodar, até que chegou ao ponto de sacrificar a agência. No fim do fechamento do site, percebemos que perdemos muitos clientes da agência e que a empresa já estava fechando no vermelho. Não bastava quebrar uma empresa, estávamos quebrando a agência também. Quando percebi a profundidade dos problemas, me tranquei dentro de mim mesmo. Meu nível de ansiedade foi ao máximo e descontei tudo na comida. Eu engordei 15 kg em um ano.

O pior, não tinha mais dinheiro para pagar meu aluguel e fazer compras para minha casa. Fiquei 6 meses com o aluguel atrasado e sem grana para fazer compras, minha mãe começou a trabalhar como faxineira no prédio onde a gente morava para ajudar a comprar comida. Nessa época, eu me sentia tão perdido que sentava no chão do box, ligava o chuveiro e ficava ali sentado, pensando o que eu poderia fazer da minha vida. Era como seu eu me trancasse no meu mundo, fugindo dos problemas. Após alguns meses, decidimos pegar um empréstimo no banco para pagar todos os nossos credores e fechar a empresa. Decidimos dever um banco do que pessoas que precisavam daquele dinheiro para viver.

Mas não basta quebrar duas vezes no mesmo ano. Eu vivi 10 anos em um único ano.

Naquele momento eu sentia que estava sendo sugado por uma areia movediça, que quanto mais eu me mexia, mais eu afundava.

Eu lembro como se fosse ontem. Alguns meses após a decisão de encerrar o site de compras coletivas, cheguei em casa cansado depois de um dia de trabalho e percebi que minha mãe estava quieta, quando normalmente ela é sempre falante. Ela me pediu para sentar no sofá e me contou com a voz embargada que havia buscado o resultado do exame que ela fez na semana anterior e foi confirmado que ela estava com câncer de mama. Nesse exato momento, parece que tudo ficou em câmera lenta ao meu redor e, logo em seguida, eu a vejo chorar sem parar nos meus braços, dizendo que não queria morrer. Eu nunca vi minha mãe tão desesperada antes.

A vida sempre foi muito dura com ela. Meu pai saiu de casa, minha mãe nunca mais teve um porto seguro. Ela precisou criar dois filhos praticamente sozinha na favela, tendo que me buscar na rua de madrugada quando estava de papo furado com meus amigos que viraram traficantes, e ainda tinha que cuidar da minha irmã mais nova. Tudo isso tendo que fazer salgados para vender nas padarias e botequins da Cidade Alta. Não era justo com ela ter que enfrentar um câncer, depois de apanhar tanto da vida, ela já não aguentava mais, e agora mais esse soco no estômago.

Naquele momento eu sentia que estava sendo sugado por uma areia movediça, que quanto mais eu me mexia, mais eu afundava. Já não sabia mais o que fazer, apenas fingir ser forte. Minha mãe não sabe, mas nesse dia eu chorei como nunca havia chorado antes. Mas chorei debaixo do cobertor, sem fazer barulho para ela não ouvir. Afinal, eu “precisava” ser forte. Até porque, logo depois de descobrir a presença do câncer e toda a burocracia do serviço público de saúde, minha mãe entrou numa profunda depressão, se entregando principalmente ao alcoolismo.

É muito difícil você ver uma pessoa que você ama definhando, desistindo da vida. Minha mãe, durante a depressão, fez de tudo para morrer.

Um dia, cheguei à noite do trabalho e ela não estava em casa. Fiquei super preocupado e como ela não tinha celular na época, fiquei esperando ela aparecer. Muitas horas depois ela aparece em casa, toda ralada. Ela me contou que tentou se matar se jogando na frente de uma kombi, e que o motorista conseguiu desviar um pouco e só esbarrou nela o suficiente para não se machucar muito. Ela estava chegando do hospital onde recebeu cuidados médicos após o incidente. Ela não assumiu a tentativa de suicídio no hospital, apenas que se desequilibrou e foi parar na rua.

Após esse ocorrido, minha família do Espírito Santo conseguiu uma cirurgia para remoção do câncer em Vitória e, após o pós-operatório, minha mãe decidiu viver com minha irmã em Vila Velha. A operação aconteceu em dezembro de 2011, no mesmo mês que encerrei as atividades da agência e comecei a buscar emprego.

Parece que todas as dificuldades que passei na minha vida foram para me preparar para aquele momento.

Da mesma forma que tudo mudou entre 2010 e 2011, a minha vida mudou completamente entre 2011 e 2012. Antes mesmo da virada do ano eu comecei a trabalhar numa pequena agência do Rio e, 6 meses depois, fui convidado para um processo seletivo para trabalhar na Agência Ideal, para atender o homem mais rico do Brasil e o 7º mais rico do mundo, na época. Eu nunca imaginei que em tão pouco tempo tanta coisa boa iria acontecer. O mais interessante de tudo é que, após 4 meses nessa agência, eu recebi uma proposta irrecusável para trabalhar na Agência3, com um dos profissionais que eu mais admirava no mercado.

E, nessa última agência, finquei raízes e fiquei por mais de 3 anos trabalhando. Fui a primeira pessoa da área de social media e quando saí, liderava uma equipe de 18 pessoas, atendendo Coca-Cola, Santander, Essilor e Vale.

O ano de 2015 foi um ano muito especial para mim, ao mesmo tempo que minha vida tinha voltado aos trilhos, minha mãe decidiu frequentar uma igreja evangélica e conseguiu se livrar do álcool e das drogas.

Dia 5 de novembro de 2015, acontece o rompimento da barragem em Mariana e, com ele, o maior desastre ambiental do Brasil. Como líder da operação de redes sociais da Vale, enquanto trabalhava na Agência3, liderei toda a operação dos canais sociais. Parece que todas as dificuldades que passei na minha vida foram para me preparar para aquele momento. Eu precisava, de alguma forma, ajudar as pessoas que estavam passando por um enorme problema e não queria que elas vivenciassem por situações difíceis, como eu havia passado. Precisava ajudar pessoas que estavam buscando informações sobre o rompimento. Criamos uma sala de crise e, durante 30 dias consecutivos, trabalhei sem tirar um dia de folga. Não tinha como eu voltar para casa sabendo que tantas pessoas iriam passar por tudo aquilo que eu passei na minha vida. E assim foi feito. Trabalhamos incansavelmente para manter as pessoas informadas o máximo possível e para buscarem ajuda da forma correta.

No dia 27 de dezembro de 2015, um domingo à noite, meu telefone toca e era a Patrícia Malavez, gerente de mídias digitais da Vale. Pensei imediatamente que era um novo acidente, confesso que me bateu um leve desespero. Patrícia me ligou para dizer que estava com uma vaga no seu time e me convidou para participar do processo seletivo.

Em janeiro de 2016 eu começo a trabalhar na Vale. Trabalhar na Vale é como você subir um prédio muito alto ou uma grande montanha. Você começa a enxergar o mundo de outro jeito, e começa e perceber que o mundo é muito maior do que você imagina.

Eis que, por meio de recomendações de amigos, o Vitor Lima me convida para dar uma aula na FGV, e que logo depois vieram duas, três, quatro aulas. Quando percebi, estava recebendo convite para dar aula na ESPM e também para ser autor de um material didático da FGV.

Cara, é sério. Ser aluno da FGV ou da ESPM era algo tão longe da realidade, que nem sequer conseguia sonhar estudar nesses lugares. Você não imagina como eu explodia de alegria por dentro quando entrei nesses lugares como PROFESSOR. Isso mesmo, vão ter que engolir um ex-favelado sendo PROFESSOR de grandes universidades.

É dentro da sala de aula, como professor, que eu me conecto com meu propósito de gerar impacto positivo na sociedade, ajudando na formação de novos profissionais. É por isso que troco meus sábados de folga para estar dentro da sala de aula. É por propósito.

Ao entender que estamos buscando sempre evoluir, passei 2 anos juntando o dinheiro que recebia pelas aulas ministradas aos sábados para fazer um curso fora do Brasil. Como sou apaixonado pelo mundo digital e por inovação, decidi fazer o curso executivo de Marketing Innovation no MIT e, após 2 anos, consegui pagar todos os custos de um curso na universidade mais inovadora do mundo. Enquanto entrava no salão do prédio principal como A-L-U-N-O do MIT e olhava os pilotis na cúpula principal, um filme passou na minha cabeça. Revisitei vários momentos da minha história. E que história… se minha vida fosse um filme, acho que a trilha sonora seria a música MOLEQUE DE VILA, do Projota. O trecho que mais me identifico é esse aqui:

“Olha lá o outdoor com o meu nome

Me emocionar não me faz ser menos homem

Se o diabo amassa o pão, você morre ou você come?

Eu não morri e nem comi, eu fiz amizade com a fome

Vai, vai lá, não tenha medo do pior

Eu sei que tudo vai mudar

Você vai transformar o mundo ao seu redor

Mas não vacila, moleque de vila”

E, se eu pudesse resumir para vocês sobre o que eu aprendi até aqui, é que a gente precisa ser que nem a minha mãe: não importa o quanto você apanhe da vida, da quantidade de vezes que vai chorar, não importa quantas vezes você perca o chão, que você tenha que se reinventar, não importa o quanto dói passar pelo o que você está passando, o que realmente importa é: NUNCA DESISTA!

Nada melhor que um dia após o outro ou um ano após o outro.

Esse texto é um resumo da minha apresentação no evento Insight Day — Histórias para inspirar transformações.

Como bônus, segue a música que resume a minha vida: Moleque de Vila (PROJOTA).

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Willian Rocha

Digital Strategist | Professor da FGV, ESPM, Miami AD School e Lisbon Digital School | Consultor de Marketing Digital | Diretor de Conexões da Agência3