Atração Fatal — em psicanálise & prazer

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Willow Ximenes
10 min readJul 1, 2020

Para Freud, o amor é cura e loucura. Cura, quando ele opera no plano simbólico e auxilia a suportar e tamponar a dor do corte ocasionada pela castração. Loucura, quando opera no plano imaginário e se revela um modo de recusa à castração ou dificuldade de entrada no plano simbólico e desejo de permanência no imaginário. Partindo dessa premissa, aqui se constrói uma análise das tensões e dos conflitos psíquicos presentes no filme ‘’Atração Fatal’’, 1988, dirigido por Adrian Lyne.

O amor pode ser como uma quimera. Criatura distante, inalcançável, simbiose de corpos distintos, resultando em poder, carregando angústia. Morfologia repleta de prolongamentos de si, ilusão de onipotência, ser enquanto dois fundidos em um, se não for de tal forma que seja destruição, aniquilação. Tais quais os platônicos redondos seres Andróginos, intraplano imaginário se sentir como Deuses do Olimpo, experienciando na carne a completude, a recusa a castração, a busca no Outro pelo ser um só junto a Mãe, a onipotência enquanto oposto a se entender como Um distinto, separado, em falta, em busca. Loucura.

E acalanto? Onde fica o acalanto? O carinho que estanca hemorragia, o outro que completa ainda sendo o outro. Por que pra alguns encontrá-lo é tão difícil e quando se encontra não se pode deixar respirar, voar longe?

Ser em total prazer é estar fora da dialética do amor, é necessitar da petrificação de toda a cena para que a imaginação possa se materializar e através dela transmutar o outro em si, e gozar, e se é tudo pelo gozo, que o Outro seja pervertido na busca por ser completo ou destruído. Viver em loucura por expulsar a castração, viver tal amor quimérico, ser anterior aos limites da sexualidade pela culpa, com isso carregar a cruz do poder de seduzir, siderar, suspender a consciência em órbita, aqueles que vivem na falta, na busca, na eterna culpa sem nome.

“Vis a Vis”, expressão vinda do francês, simbolicamente trata do momento essencial e imprescindível do “olho no olho”, cara a cara em que todo o espaço-tempo se paralisa, e dois “opostos” enxergam-se com tanto poder que o raio de visão os atravessa. Tal segundo tão poderoso é essencial para possibilitar o início de toda a montagem cenográfica perversa, em que o perverso de ego cindido, mas de tão magna ilusão de ser o Falo, enxerga no neurótico um ser de falta, um ser que precisa ser preenchido por ele, só ele tem o poder de encerrar o eterno desejo neurótico, somente ele é capaz de se tornar o objeto sexual que pode cessar o sofrimento de culpa do já siderado neurótico.

Roteiro rígido, montagem tão rígida que se torna frágil, e o mínimo ponto fora da narrativa fragmenta toda a edificação perversa, a edificação do não ser capaz de simbolizar seus desejos e se satisfazer “somente” com isso, daí a necessidade de passar ao ato, para na pouca fração de tempo o gozo completo no outro possa se tornar possível.

Tal troca de olhares acontece no primeiro e primordial giro de narrativa do filme analisado em questão, “Atração Fatal”, na festa promovida para lançar um importante livro, Dan Gallagher, personagem de Michael Douglas, em dado momento cruza (e paralisa) dilacerantes e hipnotizantes olhares com Alex Forrest, sedutora personagem interpretada por Glenn Close. Neste exato momento se inicia a fantasia perversa de Alex, fantasia esta que não se basta em si e necessita de concretização, de fala, de ato, logo pouco tempo depois ambos personagens se encontram ao acaso e decidem ir almoçar juntos, e é neste segundo encontro que as intenções, desejos e faltas ficam ainda mais claros. Torna-se perceptível como a neurótica mente de Dan enxerga psiquicamente a possibilidade do gozo ao se dar conta de que se é desejado por Alex, tal possibilidade se faz possível pela atração ao secreto, escondido, sigiloso, a adrenalina do proibido que seduz y vicia, a perversa hipnose exercida por ela sob uma fraca mente que tanto deseja se sentir completa, que tanto deseja o poder que reside em não sentir culpa ou responsabilidade. A cenografia perversa agora ainda mais estruturada permite a passagem ao ato e ambos saem diretamente do almoço para conceber em uma rigidez selvagem o ato sexual, primeiro de consecutivos ao longo de um final de semana que coloca Alex em sucessivas certezas delirantes de haver conseguido ser o objeto do desejo de Dan, três dias inteiros em uma complexa fantasia perversa reforçada pelas falas de desejo do neurótico e infiel advogado.

O jogo sexual parece perfeito e completo em si, até que desmorone, e em algum momento desmoronará, o específico momento em que a dilacerante culpa neurótica irrompe com mais força e ganhe o duelo titânico contra o desejo pela fantasia de ser desejado em completude. O momento em que Dan não pode mais ignorar o seu casamento, sua filha (abro aqui um especial parêntesis para escrever, eu não conseguiria discorrer psicanaliticamente sob tal filme sem comentar sob Ellen, filha única do casal protagonista, que logo no início do filme aparece brincando com batom da mãe, buscando se tornar a mesma y através disso conquistar o pai. Dormindo na mesma cama buscando impedir que o casal durma junto, disputando poder, justo momento em que Dan e sua esposa Beth estão atravessando dificuldades em seu casamento).

No primeiro ato-sinal, de que Dan terá que ir embora, de que a delirante montagem que falseia perfeição está chegando ao fim, Alex entra em surto, esgota-se sua sexualidade, e o que resta é dor e ódio, todo o investimento libidinal narcísico direcionado para a construção perversa do sexo é reinvestido em ódio, uma postura psíquica de indiferença nesse momento é impossível para alguém como ela, que não aceita e é capaz de conceber que seu seduzido e culpado neurótico a deixe, nesse momento ela o chuta. O chute enquanto impulso/golpe de destruição, “você precisa ser meu, precisa continuar existindo em meu imaginário enquanto prolongamento de mim, se você não pode ser meu você não pode existir, ou eu tenho que me destruir para que você se preocupe se culpe y de mim cuide.” A necessidade do gozo passado ao ato para se sentir um existente portador de existência, o prazer descabido y completo como única forma de cessar a angústia.

A partir desse ponto, a narrativa cinematográfica sofre um giro adentrando em um novo arco, em que o romance banhado de infidelidade e de uma paixão selvagem que simula uma completa perfeição com falso caráter de eternidade se transmuta em perseguição, ameaças e numa agora ex-amante mergulhada em seu delírio perverso de que precisa de Dan para existir. Loucura. Assim como em “Atração Fatal” transpondo para vida para além filme, quando a tão rígida e tirânica montagem perversa cinde e se despedaça, o indivíduo de estrutura realmente perversa para continuar negando o corte reinveste toda sua energia afetiva que antes era direcionada ao sexo agora é direcionada para morte, para aniquilação daquele responsabilizado por desintegrar seu delírio de ser objeto sexual que complete o outro em falta, o outro pervertido. Em “Atração Fatal” Alex se torna então a amante desesperada pela validação de fala de Dan que ele ainda a deseja, ainda se sente seduzido, ainda goza por ela. Liga diversas vezes para o escritório dele, sem respostas, logo passa a telefonar para a casa dos Gallagher, em curso de tanto desespero por ele, toda a energia libidinal direcionada ao sentimento de ódio armazenado que não pode ser aliviada simbolicamente e necessita ser passada ao ato, daí se inicia todo o arco tirânico de aniquilação dele, aos poucos, visando aterrorizar, punir, culpar, levar o psiquismo de sua vítima ao pó.

Alex inicia por destruir o carro de seu amante, símbolo de poder, e deixa com ele uma fita de gravação de sua voz já que ele não atende mais nenhuma ligação dela, a fala gravada carrega um enorme poder de síntese do que é o sentimento de perda de alteridade, a paixão narcísica direcionada ao objeto no plano imaginário. A tradução das palavras de Alex seria algo como “Viu o que me fez fazer? Deve ter achado que escaparia só que não pode… Você sabe, eu sinto você, sinto o seu gosto, eu penso você, toco você.” Loucura. Quimera fatal.

O caráter de complexidade da montagem delirante perversa da personagem cresce progressivamente, assumindo para si requintes de crueldade aterrorizadores. Um marco de tal evolução é o assassinato do pequeno coelho, animal de estimação dado de presente a Ellen, que pode ser colocado simbolicamente como tentativa e desejo por parte de Dan de recuperar o tempo emocional ausente de sua família, de seu papel paterno e enquanto marido que carrega a culpa pelo adultério. O cruel assassinato do animal também ocupa intramontagem tirânica perversa um local de prelúdio, um sinal para o ato maior, o ato final de aniquilação completa. Enquanto continuação de tal peça perversa, Alex sequestra Ellen, não a machuca fisicamente (mas me sidera o curioso fato da escolha narrativa inserir no tempo de rapto cenas numa montanha russa, ação proporcionadora de uma adrenalina que serve em perfeição metafórica ao trajeto psíquico percorrido durante o passar ao ato de aniquilar uma vida). O sequestro é suficiente para aterrorizar Beth, e tal terrorismo faz com que Dan confesse a traição a sua esposa amada, o que desestabiliza o pilar de confiança dentro do casamento, mas é gatilho para que a neurótica Beth assuma uma postura de extrema defesa de sua família, ameaçando Alex de morte.

O último e mais emocionante arco de “Atração Fatal” trata da luta pela sobrevivência, ou luta para matar, dependendo da perspectiva. Alex está empenhada em descarregar todo o seu ódio esfaqueando Dan, enquanto ele resiste num duelo sanguinário de esquentar os seios e arrepiar do cóccix a medula, o ponto final se dá quando Beth surge portando um revólver e atira mais de uma vez contra Alex, que escorrega pela parede e cai dentro da banheira, uma bela metáfora para um psiquismo que tem seu fim submerso em seus líquidos sentimentos, misturados ao seu próprio sangue na luta para tirar o sangue do Outro, acabar em uma pequena banheira onde unicamente seu corpo a preenche, na busca por ter a falta na carne do Outro preenchida por si.

E acalanto? Onde fica o acalanto? O amor que tampona hemorragia, o outro que completa ainda sendo o outro. Diante de tamanha tirania, de tantas linhas de perversão, loucura e dor, ainda se faz possível falar de amor enquanto “cura”? A resposta para tal questionamento é sim, o amor é chave para o crescimento mental, para suportar a dor do corte de um estado anterior de completude para um agora estado de eterna falta, o amor é chave para compreender os efeitos no presente de tal corte, é através do afeto que se faz possível acessar núcleos de angústia tão reprimidos no inconsciente, e somente pelo amor é possível a organização de um ego sadio, de um corpo que reconhece o próprio valor e com isso é capaz de reconhecer o valor no Outro.

Escrito em 04 de dezembro 2019. Pré — mundo, pré pandemia, fim de década.

Relatos Póstumos, passionalidade, a partir de trocas afetivas y enroscar de duas vozes. Movimento de dimensionalizar o anterior. Castração é o processo de lidar com o trajeto psíquico ao longo do Mito do Édipo Rei, o complexo de Édipo. A castração é corte com o absoluto, rompimento com a onipotência, o corpo dotado de infinito poder. O trajeto percorrido é inerente a edificação falaciosa de humanidade, mas a forma de lidar é completamente pessoal, intransponível. O acatar o corte leva a todas as demais neuroses, o negar é perverso, o rejeitar psicótico. O amor é cura y loucura, ambivalência, poder presente em todas as pulsões, afetações e investimentos libidinais, simultaneamente construção e destruição, vida y morte, Thanatos e Eros. O operar no plano consciente e inconsciente, surgimento póstumo de medos sem nome, fobias, atos falhos. O simbólico enquanto mecanismo de satisfação dos desejos sem necessidade de passar ao ato em realidade material, complexidade de aparelho psíquico de base neurótica. Obrigada Dilaércio Neto, para mim: meu amor.

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Willow Ximenes

Viva enquanto carne quente, marcada pelo desejo y pelo fim, e que tanto se escorre/se desfaz/se cria. Goela que sabe que merece carinho y carrega poder de grito