A democracia da vertigem — A branquitude e a disputa pela narrativa do golpe

Yasmim Yonekura
8 min readJun 24, 2019

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Dia de 19 de junho, a Netflix disponibilizou em sua plataforma o excelente documentário de Petra Costa, Democracia em Vertigem. A proposta da diretora é narrar de forma intimista, interseccionando sua vida e a vida política e institucional de nossa nação, o que seria, segundo a mesma, a vertigem e a queda livre de uma frágil democracia.

O documentário é extremamente bem feito. É didático. Narra o golpe contra Dilma Rousseff, a prisão de Luis Inácio Lula da Silva e a ascensão de Jair Bolsonaro. Focando no Senado, na Câmara e na Presidência, os diversos atores sociais e políticos desses meios se intercalam para narrar, sejam em entrevistas diretas ou registros históricos obtidos pela diretora, a queda do lulopetismo e a ascensão de antigos poderes — os homens da bancada do boi, da bíblia e da bala, que, segundo a narração de Petra, anteriormente tinham que pedir licença para entrar e, agora, espalhavam-se ávidos pelos salões de Brasília.

A obra de Costa merece sim a indicação ao Oscar, como a mídia tem sugerido, incluindo veículos tipicamente antipetistas. O IndieWire incluiu o documentário em sua lista de apostas para o Oscar 2020. Tudo isso reflete o trabalho cuidadoso de Petra, que consegue circular por Brasília e trazer um compilado didático e valioso do colapso de uma democracia jovem.

Tendo consciência de todos os méritos do documentário, tendo me emocionado profundamente com ele em vários momentos, — especialmente na forma cheia de emoção que mostra o dia em que Lula foi conduzido a cadeia após seu calvário público da Lava Jato — , entendendo que a abordagem de Petra é intimista, enlaçando a vida de sua família com a democracia jovem do Brasil, preciso fazer uma análise crítica do que falta no documentário.

Para entender melhor, a crítica, vou, como Petra em seu documentário, fazer um breve resumo de quem sou e como minha vida se intersecciona com a Era Lula-Dilma, o golpe e o bolsonarismo.

Sou uma mulher negra de 25 anos; servidora pública, doutoranda em uma universidade federal, nascida na capital da Amazônia e levada, na busca da formação acadêmica, para a capital do estado mais bolsonarista do país (Santa Catarina). Sou filha de uma professora negra que trabalhou na periferia de Belém do Pará e de um imigrante japonês que galgou degraus econômicos até se tornar classe média brasileira, passando pelo trabalho infantil e a perca da própria língua materna para tal. Ao contrário de Petra, meus pais não tiveram engajamento político na ditadura no espectro da esquerda. Na verdade, viveram vagamente conscientes de que algo estava errado, embora, a resistência política estivesse presente em seu corpos e vidas cotidianas como sujeitos racializados.

Minha família, porém, teve um militante do Partido dos Trabalhadores, meu irmão mais velho. Belém descende das sombras da repressão da Cabanagem, um movimento revolucionário popular que quase separou a Amazônia do resto do país. A ascensão do PT como resistência na ditadura nacionalmente, formou uma esquerda combativa em Belém que catapultou o Partido dos Trabalhadores para dois mandatos, em gestão municipal.

Então, assim como Petra, eu cresci amando o PT. Amando Lula, como um pai. Votei em Dilma, me opus ao golpe. Fui beneficiária das políticas de cotas raciais, fruto das lutas dos segmentos políticos do movimento negro e legitimadas pelo PT. Tornei-me pesquisadora impulsionada pela expansão da CAPES e do ensino superior, cujos picos foram 2008 e 2013, gestões petistas.

Esse processo de formação no Ensino Superior, rendeu-me uma visão crítica sobre as gestões petistas, principalmente quando me enxergo como mulher negra, nascida na Amazônia e começo a refletir sobre as políticas lulopetistas para a região onde nasci. Isso me traz ao principal argumento do texto: Entendendo a proposta de Petra e dando a ela os louros que lhe são devidos, a narrativa de “Democracia em Vertigem” é a narrativa da classe média branca, que deixa de fora muito do que é central para os 20 anos de redemocratização do Brasil.

Embora seja recorrente a fala de Petra que somos uma democracia alicerçada no colonialismo, no racismo, no sexismo e na escravidão, é notória a falta de atores políticos de raça do Senado, Legislativo e Executivo, sejam esses dentro ou fora do espectro de apoio ao PT. Temos breves falas de diferentes mulher negras do povo e de uma mulher indígena, em apoio ao Lula, afirmando como suas vidas melhoraram com a gestão dele.

Tuíra (liderança feminina amazônica) parando a construção de Belo Monte com um gesto simbólico por quase 20 anos. O projeto foi posto em prática pelos governos petistas.

Não seria problema Petra trazer apenas essas vozes para reforçar sua narrativa, caso ela também não supostamente se propusesse a fazer uma auto crítica ao PT, para contrapor o tom claramente pró petista da obra como um todo. Durante diversos momentos, a voz da diretora nos traz seu descontentamento com os conchavos políticos e com a adesão de Lula e Dilma ao que ela chama de “velha política”. Ela até traz o depoimento de um ex secretário geral do partido, que faz o mais próximo de uma auto crítica, dizendo que o PT tinha perdido seu “pé fora”, ou seja, o diálogo entre o governo e o povo. Essa é uma crítica generalista, que não abrange a complexidade dos enormes problemas dos governos Lula-Dilma, entre os quais a construção das usinas hidroelétricas na Amazônia, mesmo com a resistência indígena e sua oposição massiva aos projetos.

A partir do momento em que Petra traz uma voz de uma mulher indígena para apoiar o petismo e não consegue conciliar em sua narrativa a condução agressiva e destruidora dos projetos neocoloniais do PT na Amazônia, podemos localizar sua narrativa. A narrativa de Petra Costa, de sua família, e seu apoio é a narrativa da branquitude da classe média brasileira, majoritariamente progressista.

E o que é branquitude?

“(…) A branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis (…)”, de acordo com Hernani Francisco da Silva. Petra tem o privilégio de narrar sua história, e como mulher branca tem o privilégio de trazer sujeitos de raça para reforçar os seus próprios discursos, ao invés de, como sua narração tenta fazer, trazê-los como agentes sociais e políticos que evidenciam as tensões e falhas do Lulopetismo, ao qual ela supostamente também critica.

Essa mesma branquitude elimina um crime brutal que respinga na família que chegou ao cargo máximo do Executivo: O assassinato de Marielle Franco.

Ao argumentar que nossa democracia é alicerçada no racismo, sexismo, colonialismo e escravidão e apagar uns dos crimes mais brutais que foi o assassinato de uma vereadora negra durante intervenção militar do governo golpista de Michel Temer no Rio de Janeiro, Petra parece apenas fazer eco das políticas de racismo institucional brasileiras que historicamente apagam e diminuem pessoas negras. Em um post no Facebook, uma mulher branca argumentou comigo que Petra se focava nos três poderes de Brasília e por isso Marielle teria ficado de fora do documentário. Porém, a morte de Marielle relaciona-se com a intervenção de Michel Temer (governo federal) e recentemente respingou no governo de Jair Bolsonaro. Assim sendo, o completo apagamento de uma figura central para a história do país, simbólica para representar a morte agonizante de uma democracia frágil, parece ser mais uma prova de quem e para quem o documentário é feito.

Além disso, a intervenção aprofundada por Temer é reflexo das falhas petistas em não promoverem uma política de segurança pública pautada na luta contra o racismo. A isto, também, a narrativa não expande a suposta crítica ao PT, visto que é constantemente reforçada a imagem de Lula como “pai dos pobres” e também os depoimentos de mulheres negras exaltando a figura paterna do mesmo.

Assim, embora, o documentário acerte ao mostrar a trajetória institucional, parece-se poder inferir que são os grandes conchavos culpados pela queda do PT, e apenas estes. O distanciamento do povo é tratado de uma única fala de forma genérica e sem profundidade.

O que eu acho é que Petra tem êxito ao mostrar as tramas institucionais, mas falta a ela e a narrativa da branquitude de classe média de modo geral que a democracia do Brasil não está em vertigem, ela é uma democracia da vertigem.

Petra diz que com a eleição de Dilma, ela se sentia como se o mundo pelos quais os pais dela lutaram estivesse mais perto. Entendendo todos os avanços sociais do Brasil sob o PT, se você perguntasse para Mano Brown se o mundo que ele deseja, 21 anos e algumas gestões petistas depois de lançado o clássico “Sobrevivendo ao Inferno”, a resposta seria diferente;

Em “Capítulo 4, Versículo 3”, os Racionais dizem que, nos anos 1990, a população negra era a maior vítima da letalidade policial. Segundo a letra, três em cada quatro mortos pelas forças de segurança eram negros. O índice permanece o mesmo 21 anos depois do lançamento da música.

Fonte

Embora a trajetória do Partido dos Trabalhadores seja histórica na América Latina, a real ruptura com um sistema econômico capitalista que nos subalterniza, que se alimenta da exploração econômica e do genocídio dos corpos racializados, da destruição do nosso patrimônio natural, não se deu em nenhum governo petista. As vitórias petistas foram performadas dentro de instituições viciadas e cujos atores políticos tem interesse de manter um sistema de poder excludente e assassino, assim, elas estão se desfazendo a medida que os antigos senhores de engenho voltam aos seus lugares.

Como a própria Petra diz, somos uma democracia de famílias. O PT aprendeu a negociar com elas e isso lhe custou o apoio popular e o futuro da nação.

Enquanto a noção de que tudo isso não passa por um verdadeiro debate sobre decolonialidade, sobre a reestruturação da nossa consciência e ethos nacional debatendo de fato raça, classe e gênero e, com tudo isso, a destruição do capitalismo neoliberal e necropolítico do Brasil, continuaremos sendo a democracia da vertigem.

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