“Pantera Negra”: Uma “nação negra” emerge — Achille Mbembé

Yasmim Yonekura
6 min readMar 2, 2018

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Esse texto é uma tradução que fiz para um grande amigo teórico e professor do texto “Black Panther”: Une “nation nègre” debout, do grande filósofo africano Achille Mbembé. Decidi desencavar meu francês e compartilhar com todas as pessoas interessadas em saber a opinião de um dos maiores teóricos e pensadores pretos de todos os tempos sobre o filme de Ryan Coogler, especialmente para pessoas negras que amaram o filme, pois sei que nem todos tiveram a oportunidade de nascer filha de um japonês rico que estudou dois anos de francês na Aliança Francesa. Tentei manter fidelidade ao texto e não cometer o epistemicídio hegemônico das traduções de pretos para outras línguas, mas obviamente adaptações foram necessárias, pensando em tornar o texto acessível ao público descontextualizado na linguagem acadêmica. Críticas são bem vindas e peço perdão pelas possíveis falhas, pois meu francês ficou quase quatro anos parado.

Divirtam-se.

“Ontem, após o meio dia, eu fui ver Pantera Negra no Hyde Park. Um irmão africano-americano — homem de negócios — que retorna à Johanesburgo depois de 17 anos teve a boa ideia de organizar esse passeio especificamente voltado para jovens alunos de duas escolas da cidade. Então, nós nos encontramos no cinema com uma centena de crianças acompanhadas por seus pais — uma turma animada e de diversas origens; de gêneros, de raças e de crenças — como só essa nação “arco-no-céu”[1] produz de tempos em tempos.

O fim da sessão foi seguido de um debate de mais de uma hora, em uma sala adjacente. Foi requerido de nós, a condução deste debate. Nós preferimos fazer algumas observações e preferimos escutar o que as próprias crianças tinham a nos dizer — com sua voz inimitável — sobre o que haviam retido do filme.

Tinha, durante a projeção, dentro da sala, algo que a fez particularmente especial; um tipo de felicidade causada sempre pela presença das crianças em certos lugares, nunca exclusivamente. Era algo como uma exalação de ar contagiosa que, subitamente, toma conta de tudo, e se faz exprimir nas vozes que não havíamos entendido plenamente ainda, mesmo depois de tanto tempo, numa polifonia de línguas novas.

Em um livro escrito em 2010, intitulado Sair da Grande Noite (Sortir de la grande nuit), que escrevi aos sujeitos da África: “Alguma coisa intensamente fecunda dessa África-gleba, imensa campeã de labor, de matérias e de coisas, algo suscetível de abrir um universo infinito, extensivo e heterogêneo, o universo da pluralidade e da abertura. Esse mundo do devir-africano, de quem a trama, complexa e móvel, não para de transitar entre formas mutáveis e se desvia de todas as línguas e sonoridades e dificilmente se prende a alguma língua ou pureza; esses corpos em movimento, jamais em seu lugar, cujo centro se desfaz em todas as direções, esses corpos que se movem na enorme máquina do mundo, nós buscamos um nome — afropolitanismo.” (13–14).

Ainda se faz necessário acrescentar outro nome — afrofuturismo. É isto que faz esse filme que, na verdade, é uma extraordinária síntese de todas as idéias e conceitos que, desde mais ou menos o final do século XIX, tem acompanhado as lutas negras na evolução da humanidade. Para quem saber ler entre as imagens, para quem sabe escutar os ritmos e casá-los ao pulsar históricos, os fios estão lá plenamente manifestos. Nas sequências de cenas, pairam mil ombros, mil correntes de pensamentos — de Marcus Garvey [2] à Cheik Anta Diop[3], da negritude ao afrocentrismo, do afropolitanismo ao afrofuturismo. Esse filme é, sem dúvida o primeiro do gênero, uma façanha intelectual; um cenário e um espetáculo de grandes idéias e correntes de pensamento que têm acompanhado nossos esforços por “sair da grande noite”.

O surgimento de uma “nação negra” no seio da humanidade

Não se tem somente um encontro conjunto dos melhores de nossos criadores, de nossos diretores (Ryan Coogler), nossos atores mais carismáticos (Lupita N’yong’o, Letitia Wright, Danai Gurira, Chadwick Boseman, Angela Basset, Forest Whitaker, Michael B. Jordan, Daniel Kaluuya, etc.), nossos estilistas, compositores (Kendrick Lamar) e modelos. Tem-se a restituição de um panorama espetacular e de dimensão planetária que tem sido sonhado desde o começo da era moderna (pois éramos representados como escravos, assujeitados e dispersos); o surgimento de uma “nação negra”, pulsante e singular, ao seio da humanidade.

O filme capta a faceta dramática dessa aspiração, numa linguagem vibrante, inteligente e sutil, surgida das profundezas de uma passagem gigantescas e totalmente adornada para um futuro de possibilidades múltiplas e complexas. Tudo, ou quase tudo, é transmitido: uma “civilização” (a palavra não é exagerada) autocentrada, imbuída de tecnologia inovadora e futurista conectada a tradições milenares; uma terra que tem seu quinhão de riquezas insondáveis, todos os tipos de minerais cujo um, o vibranium, se constitui como a chave que abre a porta da exuberância e da onipotência; os rituais de ressurreição quase telúricos, quando, na argila ou enterrados, sob o sol vermelho ocre, o corpo do rei empreende sua viagem aos ancestrais, usados pela sombra de Osiris, e se comunicam com os mortos; a pulsação onírica dos costumes e sua beleza única numa variedade de cores e um tornado de formas, dos corpos negros de uma força, santidade e cores cintilantes, do preto azulado ao preto claro, preto preto e do preto marrom chocolate, o culto da multiplicidade, da impetuosidade e da disseminação e da proliferação.

Eu nem falo sobre as formas das cidades e da arquitetura, em memória dos grandes reinos do Mali, Gana e Songhai. De toda esta tradição arquitetônica e de todas as infra-estruturas a partir das quais nascem sistemas tecnológicos e conhecimentos novos. De todas essas formas de conquista da matéria em harmonia com o mundo de sonhos e de maquinas. Máquinas elas mesmas esculpidas à imagem do mundo dos animais, dos pássaros, em suma, da flora, da fauna e de um sistema aquático antigo.

Um vento de otimismo

Então, em certo sentido, a temporalidade é a questão que o filme propõe — a temporalidade negra. A política da temporalidade, na verdade, quando os rancores antigos, o genocídio original, continuam a envenenar o poço por falta de conjuração e expiação; a divisão e a discórdia , a guerra intraparental e a transmissão intergeracional; é um caso antigo de sangue derramado, de sangue exaurido, poder para o povo, por todos os meios; e, finalmente, de uma sociedade que corre o risco de autofagia, por não poder concordar no essencial. Muitas outras temáticas atravessam essa obra, um enorme monumento aqueles que os outros chamam de “humanidade negra”.

Como não evocar, sobre esse filme, a centralidade da mulher nesse roteiro? Ao fundo, em relação a política da temporalidade negra, de onde venho para dizer que ela é a temática central do filme, o filme por si só diz uma coisa: a mulher é o segredo da temporalidade. E por conseqüência do poder. A “renascença negra” passará por ela, por esse poderoso enigma que é a mulher. Então, se a África deve voltar-se a si mesma, se ela deve tornar-se novamente seu próprio centro e sua própria força, então, talvez nós devêssemos confrontar de olhos abertos, esse enigma, pois de sua resolução depende nosso futuro.

Há muitas outras coisas a dizer-se a respeito dessa realização. Ao sair da sessão em Hyde Park, exalava-se algo como um vento de otimismo. No entanto, será necessário mais do que um filme para retornar a roda da história. Mas uma coisa é certa. “A África terá que olhar para o que é novo. Ela terá que se encontrar e realizar, pela primeira vez, o que nunca antes foi possível. Ela terá que adquirir a consciência para abrir novos tempos para si e para a humanidade” (Sair da Grande Noite, 243).”

[1] Traduzido literalmente, “nation arc-en-ciel” é o nome que Desmond Tutu usou para definir o ideal de uma nação pós-racial, sem segregação. Nesse caso, Johanesburgo é a maior cidade da África do Sul.

[2] Ativista jamaicano proeminente na história do nacionalismo negro.

[3] Antropólogo e historiador senegalês que estudou as culturas africanas pré-coloniais.

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