Foto de faixas de karatê dobradas, na ordem de: vermelha, amarela, laranja, depois branca.

Um texto sobre Karatê

Jéssica Yumi Tanimoto
10 min readOct 20, 2020

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Se você teve contato um pouco mais próximo comigo, deve saber que eu já pratiquei karatê. Talvez até tenha ouvido uma frase que eu costumo repetir bastante, "o karatê é uma das minhas únicas paixões". Quando digo isso não é exagero; nem a parte que essa arte marcial é uma paixão e nem que é uma das únicas.

Eu nunca fui uma grande fã de nada. Nunca tive uma banda preferida, um filme preferido nem um artista. Durante a adolescência eu tentava entender o que meus colegas sentiam quando acompanhavam notícias de seus "ídolos" na internet enquanto eu só ficava observando e me perguntando como deveria ser admirar tanto alguém ou algo a ponto de ser uma paixão.

No início de 2014 fui com minha amiga Julia em uma aula experimental de karatê, ela que me chamou. Era algo que eu sempre quis fazer desde muito pequena, mas meu pai negava porque era "coisa de menino". Agora que eu era maior, finalmente podia ter mais voz sobre o que eu queria e não queria fazer. Voltando à história, essa primeira aula foi um desastre: no auge dos meus 16 anos eu não era completamente sedentária, mas também não praticava nenhum tipo de atividade física com frequência além de caminhar longas distâncias dentro do campus da minha escola ou andar até o ponto de ônibus. A turma em que entramos era a dos "jovens" onde tinham alunos mais ou menos dos 8 aos 16 anos acredito eu. Todos tinham muita energia, e já no aquecimento tive que parar várias vezes para respirar. Tinha corrida, flexões, abdominais e alongamentos em dupla que me fizeram perceber como meu condicionamento físico estava terrível. Apesar disso, foi super revigorante e eu voltei pra casa bastante animada.

Eventualmente Julia saiu do karatê; minha irmã que acabou entrando depois de mim saiu também, mas eu passei a ir nas aulas religiosamente 3 vezes por semana, e era como um ritual. Eu nunca faltava e nada podia passar por cima do karatê para mim. Nem na vez em que eu fiquei doente e precisei tomar antibiótico — e quase desmaiei na aula por causa disso — ou quando o atrito constante da sola do meu pé com o tatame fez uma grande parte da pele se soltar causando uma ferida exposta. Eu não pararia por nada.

Uma hora antes de cada aula eu fazia alongamentos em casa, depois comia alguma coisa leve e bebia água. Logo em seguida, chegava a hora de vestir o kimono e amarrar a faixa — de um jeito bastante específico — e então esperar pacientemente a carona do pai pra me levar até lá. Eu carregava comigo minhas luvas de luta (vermelhas, porque essa é uma das minhas cores), uma garrafinha de água e uma muda de roupas. As vezes eu me trocava lá também, mas era melhor já ir preparada para poder chegar e começar a aquecer direto. Chegando em casa, colocava a roupa molhada de suor no varal e ia direto para um banho gelado. Não sei de onde tirei isso, mas li em algum lugar que tomar uma ducha gelada depois de se exercitar ajudava seus músculos a se recuperarem, e eu fazia isso todo dia sem questionar, pois em tese ia contribuir para minha performance.

Sobre o Corpo

Já estamos em 2020, então eu não me lembro especificamente de todos os momentos da minha progressão, principalmente no início. Eu só sei que com o tempo, o karatê foi se tornando uma parte muito importante de mim. Eu aprendia cada vez mais a entender e respeitar meu corpo, melhorar meu condicionamento físico e minha respiração. Desde que nasci eu tenho uma rinite muito forte que torna meu sistema respiratório de certa forma debilitado — ainda mais em Paranaguá, uma cidade bastante úmida e com resíduos das cargas portuárias no ar — , mas depois que comecei a praticar karatê regularmente, a qualidade da minha respiração melhorou infinitamente e eu pude experimentar o que é expirar e inspirar sem muitos problemas. Isso se mantém até o presente momento.

Hoje em dia eu não hesito em dizer que era boa. E eu era muito boa, mas não era fácil. Como foi mencionado antes, eu era sedentária então minha resistência era bem baixa. Uma luta de 5 minutos e eu já não aguentava mais. Principalmente nos primeiros meses, o aquecimento foi um grande sofrimento todo santo dia. Eu era fraca e não conseguia acompanhar até o final, minha boca sempre secava e eu tinha que parar para beber água, meu corpo não tinha o melhor formato para favorecer os movimentos e por aí vai.

Também não sei de onde tirei isso, mas eu tinha a informação de que nossa estrutura óssea demora em média 6 meses para se readaptar a uma nova rotina de exercícios físicos. Não sei dizer se era verdade (e nem pesquisei depois), mas foi mais ou menos isso que eu demorei pra me acostumar completamente a todas as partes do treino que durava mais ou menos duas horas. Eu finalmente conseguia correr o percurso inteiro, fazer todas as flexões e abdominais e havia me tornado uma das alunas mais flexíveis da turma. A sola dos meus pés tinham finalmente engrossado e eu aguentava um pouco mais durante as lutas. Foi uma satisfação muito grande ver como meu corpo evoluiu e que eu estava entendendo cada vez melhor como melhorar nas técnicas dos katas.

Você vai ler bastante essa última palavra daqui pra frente, então irei explicar. Parafraseando a Wikipédia:

Kata é uma sequência de movimentos de ataque e defesa e está presente nas mais diversas artes marciais japonesas, realizados em conjunto ou individualmente, como uma coreografia. Um Kata é formado por movimentos do Kihon, que é a prática das técnicas fundamentais: bases, defesas, socos, chutes. Os níveis de dificuldade dos katas e kihons vão aumentando conforme a faixa da pessoa.

Não me entenda mal, as coisas não passaram a ser simplesmente fáceis, eu apenas conseguia fazer coisas cada vez mais difíceis. Meus músculos ainda ardiam bastante ao ficar muito tempo praticando certas bases, meu fôlego ainda acabava ao final de uma luta longa, e meu corpo ainda parecia muito desengonçado ao executar certos movimentos. O mais interessante é que mesmo depois de tudo isso, eu ainda me sentia extremamente motivada e interessada em continuar. Eu queria ser cada vez melhor e nada me desanimava. Nem quando eu perdia todas as lutas para uma garotinha prodígio de 11 anos, nem quando em um dia minha apresentação estava uma merda, nem no dia em que minhas parceiras de treino favoritas faltavam. Eu estaria sempre lá por puro desejo, do fundo do meu coração.

Sobre a Mente

Acho que um dos motivos pelos quais isso tudo se tornou tão importante pra mim foi o treinamento mental que tive junto do corporal. Veja bem, conforme você vai avançando no karatê, tem coisas cada vez mais complexas que você precisa fazer — isto é, se quiser continuar passando para a próxima faixa. Posições e sequências de golpes de alto nível que podem frustrar qualquer um nas primeiras tentativas, ainda mais quando sua perna já está tremendo de exaustão por ficar míseros 5 segundos naquela postura.

Tem uma base chamada nekoashi dachi, esse era o meu maior terror. Não encontrei nenhuma imagem assustadora o suficiente mas coloquei uma referência para quem tiver curiosidade. Ela parece muito simples — ainda mais com todo esse kimono escondendo tudo — mas é extremamente cansativa e difícil. A perna de trás irá segurar todo o seu peso, e deve estar abaixada até uma altura muito específica, e esse pé deve estar virado em um ângulo também muito específico. O pé da frente te ajuda a equilibrar, mas não deve apoiar nenhum peso. Além disso, sua coluna tem que estar perfeitamente ereta, para então finalmente você executar golpes com os braços. Eu comecei a aprender essa base quando passei para a faixa vermelha, que foi bem no momento em que saí do meu dojo.

Bem, eu expliquei tudo isso e dei toda essa volta para te dizer: eu não conseguia ficar naquela base por 5 segundos sem minha pena de trás tremer, chegava a ser constrangedor. Eu ia muito bem em tudo, mas nisso… não tinha santo que fizesse eu ficar nessa maldita posição de forma decente. Apesar disso, nunca pensei em desistir. Nunca. Nem sequer desanimei. No karatê nós éramos ensinados a ter persistência naquilo que almejamos. A paciência de melhorar de grão em grão, e estar sempre grato por isso. A perseverança de que você vai conseguir sim aquilo que quer, se trabalhar para isso. E não me leve à mal, não falo de meritocracia aqui, mas de objetivos pessoas que cultivamos lá no fundo do nosso ser. Aquela coisa que você quer muito, e que apesar de parecer muito distante das suas mãos, você não consegue desistir, porque tem paixão por isso. Era só… bonito. Cada dor, cada pingo de suor, cada tombo, cada momento de exaustão parecia estar exatamente onde deveria; cada grãozinho caindo para formar uma montanha no final.

Por isso, depois de praticar karatê por um tempo, passei a me tornar muito mais confiante e corajosa em todas as áreas da minha vida. Além de reconhecer meu potencial que já tinha, também tinha confiança no que poderia desenvolver. Aprendi a não desistir, tentar, errar, tentar de novo e se no final perder: tentar de novo mesmo assim, até dar certo. Esse ensinamento tem sido valiosíssimo para mim até hoje, 6 anos depois. Principalmente no campo profissional, quando passo por alguma grande dificuldade, eu lembro do karatê e do que aprendi. Paro um pouco, respiro, penso, e tento de novo.

Os Detalhes

É interessante porque quando penso sobre isso, a maioria das minhas memórias são pequenos detalhes super vívidos que fazem do karatê algo tão importante para mim. São fragmentos de cenas que consigo visualizar lentamente, e relembrar cada parte e cada sensação. Como um estalo alto muito específico que o kimono fazia quando um movimento era executado com precisão suficiente; se parecia com um som de atrito entre roupas molhadas (você pode ouví-lo aqui). Ou então, o leve deslocamento que eu sentia no meu pé esquerdo ao executar um chute mawashi geri, além da sensação deliciosa do giro que o quadril fazia quando eu acertava. Tinha também a postura executada antes de uma luta; eu fazia o cruzamento dos braços super rápido a fim de intimidar o oponente, o que as vezes fazia com que os punhos se encontrassem e fizessem um estalo. As vezes eu exagerava e eles se batiam causando dor, mas eu não ligava, porque naquele momento eu estava completamente ali, física e mentalmente. Eu sentia minha respiração mudar, e a forma que eu olhava pra pessoa na minha frente. Nesse momento nada mais importava, e podia acontecer o que acontecesse ao redor, eu não ia perceber.

Também dava uma sensação muito boa ouvir todas as respirações durante um kata bem feito. O karatê não é só sobre movimentos complexos, ele envolve uma respiração complexa, porque ela fortalece o corpo e faz com que sua defesa e ataque sejam de fato fortes. Quando você faz uma sequência de golpes no ritmo e intensidades corretos, a cada passo a expiração faz um som. É algo tipo um suspiro muito rápido e forte, as vezes sai tão rápido que parece um sussurro. Temos exercícios e katas específicos só para isso, e era incrível ver como eles realmente faziam sentido na prática.

O Agora

Se você prestou atenção, percebeu quando eu falei que saí do meu dojo. Eu pratiquei durante quase dois anos em Paranaguá (minha cidade natal) em um pequeno dojo do estilo Goju Ryu. Quem ensinava era meu sensei Adauto, um homem grande e com cara de mau, muito paciente e inspirador. Parei de praticar quando me mudei para Curitiba no segundo semestre de 2015 para fazer faculdade. Até aí tudo bem, mas eu não pude continuar praticando aqui porque logo antes de me mudar machuquei meu joelho de uma forma que me impede de praticar esportes até hoje. Fui em alguns ortopedistas e meu problema não era grave o suficiente para aparecer em um raio-x, mas ainda me tornava incapaz de fazer qualquer movimento de alto impacto (no início, nem correr eu conseguia). Depois de algumas consultas, me disseram que eu tenho "condromalácia patelar" e o que eu sei é que minha patela sai do lugar muito mais do que deveria quando faço certas atividades. Cheguei a fazer até fisioterapia por um tempo, mas no momento o que preciso é fortalecer a musculatura da área para que possa voltar a aguentar impactos maiores. Por causa disso, academia tem se tornado algo importante para mim, pois isso irá possibilitar minha volta ao karatê. Esse ferimento ocorreu porque minha musculatura não era forte o suficiente e eu o sobrecarreguei além do que deveria. Não aconteceu durante um treino ou luta, mas acho que eventualmente teria acontecido de qualquer forma, porque era o meu corpo que não estava forte o suficiente, e o karatê é uma arte marcial que exige bastante resistência. Meu objetivo é deixar meu corpo bem forte para voltar a praticar karatê e voltar a competir.

Por causa de todos esses motivos, isso se tornou minha paixão. Do tipo que eu posso ficar horas falando sobre sem me cansar. Quando praticava, tudo o que eu pensava era karatê. Se pudesse praticar o dia inteiro, eu praticaria. Antes de dormir, todas as noites eu ficava repassando na minha cabeça os katas em looping infinito. Me esforçava muito para decorar todos os nomes em japonês e ficava matutando o que eu poderia fazer para ficar cada vez melhor. Gosto do karatê porque ele faz de mim melhor em todos os aspectos possíveis, e me sentia extremamente bem enquanto praticava, a todo momento. Agora, o que sinto é uma enorme saudade, mas sei que não será eterna. Sei que em algum momento poderei finalmente dizer: gente, voltei pro karatê, e escrever um texto sobre a sensação de estar fazendo novamente a coisa que já me fez mais bem durante minha vida toda.

Considerações finais

Eu sei que o título é "Um texto sobre Karatê" mas no final ele acabou sendo sobre mim. Daí pensei em fazer um título estilizado com a palavra "Karatê" riscada e do lado "Mim" pra que ficasse "Um texto sobre (Karatê) Mim". A ideia pareceu chique mas não tem essa opção no Medium, então fica aqui a observação.

Ao reler tudo, pensei em diversas histórias que queria contar mas que não pareciam encaixar em nenhum lugar, então pensei em publicar pequenos textos de situações que já me ocorreram no mundo do karatê, tipo uma série, algo assim. Se você achar essa ideia legal, me fale!

Unlisted

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