Precisamos falar sobre a Netflix

O capitalismo preocupado e bonzinho funciona?

Yuri Holanda
5 min readMar 15, 2017
Cena de ‘Orange is the New Black’

Durante toda a minha vida, aprendi que não devo elogiar ou enaltecer marcas, empresas, ou grandes veículos de comunicação. Eles normalmente são corporações grandes demais, que atendem demandas que vão além da minha percepção individual do mundo, ou seja, um dia, mais cedo ou mais tarde, me decepcionarão. Enquanto consumidor da Netflix e ciente de que não devo bajular empresas, sempre tive um pé atrás com a mesma. Vi pessoas à flor da pele com o marketing, com as produções inovadoras e com a mensagem de inclusão social que ela proporciona. Eu me segurava, talvez porque já tivesse me decepcionado demais com essas empresas, e quando a Netflix finalmente desse a sua bola fora, eu poderia ter o prazer de dizer “Eu avisei!”

E então a empresa trouxe sua primeira produção de sucesso: Orange Is The New Black, série essa que traz um elenco feminino em peso, diversificado, com atrizes negras, gordas, latinas e transexuais. Junto com isso, o combo ainda veio com grandes atuações e roteiro excelente. Uma série completa e quase inteiramente feita e protagonizada por mulheres. Me agradou muito. Agradou aos meus pensamentos e a minha ideologia individual, anti-machista, inclusiva, diversificada, não-conservadora. Gostei, elogiei a série, assim como elogio todas as que gosto, critiquei o que desgostei, etc. Até a terceira temporada, eu mantinha um pé atrás com Orange porque eu estava só esperando a série desmanchar-se em futilidade e abandonar todo o seu sentido inicial.

Cena de ‘Orange is the New Black’

Mas foi aí que me enganei. Orange chegou em seu quarto ano com os seus culhões e unhas mais afiados que tudo, e foi quando eu joguei a toalha. Não poupei elogios a Netflix e a série, e não me arrependo. Eu estava vendo uma produção que discutia e jogava na cara da classe-média que consegue assinar Netflix mil e uma verdades sobre o mundo, verdades essas que muitas dessas pessoas parecem ignorar a existência: racismo, transfobia, machismo, misoginia, violência, lesbofobia, etc. Tudo em uma só produção. Eu não poderia estar mais orgulhoso e respaldado, e sou homem cisgênero e branco! Imagine a sensação que mulheres cisgêneros, transexuais, negras e lésbicas tiveram.

No mesmo ano de Orange Is The New Black a série mais genial da Netflix, em minha opinião, também nasceu. House of Cards trás o universo podre da política americana que é tão endeusada mundialmente (‘american way of life’) e joga a merda no ventilador. A série funciona quase como uma denúncia a ferrugem podre que há por trás do verniz que cobre as asas políticas da águia dos Estados Unidos da América. E não pára por aí: caso você, que esteja lendo esse texto, não tenha entendido ou visto os memes na internet, House of Cards é quase um reflexo da nossa estragada e desgastada política brasileira.

Mas o meu eu de telespectador também temia, em relação a House of Cards, o que temia em relação a Orange Is The New Black: que a série fosse se perder em futilidade e abandonasse suas virtudes corajosas de críticas a política. E olha só, assim como Orange, House of Cards, em seu quarto ano, foi além. A Netflix teve a ambição de colocar Claire Underwood, que sempre se mostrou uma personagem peculiar, no mesmo nível de seu protagonista masculino, Frank Underwood, e mostrar que mulheres também sabem fazer política do mesmo modo, ou talvez até melhor que homens. Ah, e só um detalhe: Frank Underwood é bissexual. Nós temos uma série que mostra um anti-herói, que é a personificação da política engana-trouxa dos Estados Unidos, bissexual. Eu achava que a Netflix não poderia me fazer mais feliz no meu mundinho fechado de cidadão classe-média que tem acesso à entretenimento.

Cena de ‘House of Cards’

E aí apareceu Sense8, a série mais diversificada que há. Só entre os protagonistas existem negros, gays, transexual, lésbicas, coreanos e a mesma quantidade de mulheres e homens. A série fez um barulho gigantesco, principalmente entre os brasileiros, que corresponderam com sua diversidade à pluralidade da série. Particularmente, não gostei tanto de Sense8 como série, em questões de história, enredo, roteiro, etc. Mas para resumir meu pensamento: prefiro o elenco à série. Mas uma coisa não posso negar, não há como negar: Sense8 dá representatividade a diversidade da sociedade de hoje que carece de exemplos midiáticos como esse.

Como se não bastasse essas três produções, a Netflix se doou ainda mais: trouxe Unbreakable Kimmy Schmidt, série que trás um personagem negro e gay entre os três protagonistas (as outras duas, mulheres). Produziu Jessica Jones, série sobre uma super-heroína que carrega um trauma misógino e enfrenta os demônios que estão muito vivos na sociedade: estupro e machismo. Também nos trouxe Grace & Frankie, série que conta a história de duas senhoras que descobrem que seus maridos tem um caso amoroso. E por fim, temos Stranger Things, série que não trás assuntos como esses em seu centro, mas sim nas entrelinhas: a protagonista, personagem mais poderosa da série, é uma menina, El (ou Eleven/Onze), que desafia os meios e estereótipos femininos: tem a cabeça raspada e definitivamente não é delicada.

Cena de ‘Sense8’

Tenho certeza que é muita ingenuidade pensar que a Netflix não usa o avanço e barulho de movimentos sociais como marketing e para bem próprio. Sei que ela usa, todos sabem. Mas pensando por um lado de ajuda aos movimentos, ajuda real, midiática, com força, que é o que precisam, a Netflix merece certo reconhecimento. Não é com medo que estou escrevendo sobre o quão feliz estou com as proporções que a empresa está tomando (está presente em quase todo o globo), com a direção progressista e inclusiva que leva suas produções mais famosas para o mundo. Tem gente que precisa disso. O que a Netflix tem feito conosco não é nada mais do que nos colocar na tela. Colocar nossas histórias e nossas dores. É representatividade, visibilidade, palavras que, especialmente nos dias de hoje, tem significados essenciais e vitais para alguns grupos de pessoas.

E enquanto ainda estamos presos ao Capitalismo, sejamos menos pós-modernos, sentemos ao nosso sofá e nos enxerguemos nos personagens da Netflix.

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