Melancolia I: a solidão intelectual

Três faces da solidão nas Meisterstiche de Albrecht Dürer — Parte III

Yuri Pires
9 min readJul 26, 2020

[esta é a terceira parte de um artigo. Para ler as duas primeiras: parte 1 e parte 2]

Exposta, então, a oposição entre vida ativa e vida contemplativa nas duas gravuras anteriores, resta analisar a última gravura, Melancolia I. Erwin Panofsky, na obra já citada, destaca ser esta gravura a mais radical das três, uma vez que não se trata das diferenças entre duas formas de servir a Deus, mas de uma forma de se opor a Deus, qual seja, a criação.

Contudo, se as duas primeiras gravuras são “contrapartes espirituais”, no dizer de Panofsky, há entre São Jerônimo em seu estúdio e Melancolia I um espelhamento visual de oposição. Note-se, por exemplo, a posição confortável de São Jerônimo em sua mesa em contraponto à forma como a figura alada senta-se, agachada e sem apoio na pedra dura; ou, ainda, o ambiente: o santo está num organizado e ensolarado estúdio, enquanto em Melancolia I encontra-se o relento da noite fria e inúmeros objetos espalhados pelo chão.

Apreensão, criação e colonização

Quando Albrecht Dürer compõe as suas Meistertiche, no século dezesseis, a palavra depressão ainda não era empregada no sentido atual. É apenas no meio do século dezenove que o termo começa a aparecer nos dicionários médicos. Outros termos são encontrados, em alguns contextos, para denominar o que hoje conhecemos como estado depressivo, dentre eles, Angústia, Apreensão e Melancolia.

Martin Heidegger (1889–1976), em sua obra Ser e tempo, reconta uma fábula atribuída a Higino (c. 64 a.C. — 17 d.C.) sobre a criação do homem. Em tradução de Marcus V. Mazzari:

“Quando certa vez a ‘Apreensão’ atravessava um rio, viu uma placa de terra argilosa: pensativa, tomou um pedaço e começou a moldá-lo. Enquanto vai pensando consigo sobre o que criara, chega Júpiter. A ‘Apreensão’ pede-lhe que insufle espírito ao pedaço de argila moldada. Júpiter atende-lhe de bom grado o pedido. Mas quando ela quis atribuir seu nome à figura, Júpiter proibiu tal coisa e exigiu que lhe fosse dado seu nome. Enquanto a ‘Apreensão’ e Júpiter contendiam em torno do nome, levantou-se também a Terra [Tellus] e exprimiu o desejo de que fosse atribuído à figura o seu nome, já que ela lhe ofertara um pedaço de seu corpo. Os litigantes tomaram Saturno por árbitro. E Saturno lhes proferiu a seguinte decisão, aparentemente justa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves à sua morte receber o espírito; tu, Terra, por teres ofertado o corpo, deves receber o corpo. Mas por ter sido a ‘Apreensão’ quem primeiro formou este ser, que então a ‘Apreensão’ o possua enquanto ele viver. Mas como há disputa em torno do nome, que ele se chame ‘homo’, já que foi feito de humus [terra].” (MAZZARI: 2019, pp. 152–153).

Tal fabulação afirmaria, portanto, a Apreensão como condição humana, e é resgatada por Mazzari em seu recente A dupla noite das tílias — História e natureza no Fausto de Goethe, ensaio atualizador da leitura do clássico.

É no quinto ato de Fausto II, em meio à chamada tragédia da colonização, quando Fausto assume o papel de colonizador, que se dá a cena “Meia-noite”, na qual Fausto dialoga com a Apreensão, que lhe diz:

“Quem possuo é meu a fundo,

lucro algum lhe outorga o mundo;

ronda-o treva permanente,

não vê o sol nascente ou poente;

com perfeita vista externa

no Eu lhe mora sombra eterna

e com ricos bens em mão,

não lhes frui a possessão.

Morre à míngua na fartura;

seja dor, seja alegria,

passa-as para o outro dia,

do futuro, só, consciente,

indeciso eternamente. (GOETHE: 2017, p. 957/959)

O sujeito tomado pela Apreensão é um sujeito atormentado, mas, sobretudo, tomado internamente por uma “sombra eterna”, que lhe faz “indeciso eternamente”.

Detalhe de Melancolia I

Se recortamos a gravura em questão na metade, temos, em sua metade esquerda, símbolos de uma obra inacabada. A escada encostada à parede, a metade de uma balança, um martelo, uma pedra de amolar, além de plano, serra, régua, um pequeno caldeirão, pinças para segurar brasas etc. É um ambiente de trabalho (já foi dito que um dos principais interesses de Dürer era a arquitetura), certamente, porém o prédio encontra-se inacabado.

Mais uma vez salta aos olhos a diferença para o chão absolutamente organizado do estúdio de São Jerônimo. Também lá havia uma criação sendo elaborada: a tradução da Bíblia. Contudo, tanto a escrita quanto a tradução da Bíblia são obras inspiradas pelo Espírito Santo, portanto aproximam-se da perfeição, enquanto todos esses objetos espalhados e o próprio prédio inacabado são obras humanas, portanto beiram a imperfeição.

Segundo essa leitura do contraste, nos aproximaríamos da concepção expressa na fábula de Higino, segundo a qual o ser humano é possuído pela Apreensão “enquanto ele viver”.

Contudo, é na imagem montada pela Apreensão no Fausto, de Goethe, que vislumbramos o “meio do caminho” da construção inacabada. É a imagem mais rica de um momento no qual se nos aflora a Apreensão.

Detalhe de Melancolia I

A face e a postura das figuras aladas da gravura de Dürer dão conta dessa paralisia de que fala a Apreensão no Fausto. Há tanto trabalho a fazer ainda e, no entanto, esse trabalho jamais alcançará a perfeição da criação divina, por mais empenho, por mais engenho, por mais tecnologia que se use.

Talvez esta seja a fonte da Apreensão da figura de Melancolia I e do Fausto colonizador: por maior ímpeto e entrega que haja na criação humana, sempre haverá mais a ser feito, nunca haverá perfeição e, portanto, nenhum descanso no sétimo dia.

São palavras do próprio Albrecht Dürer, alguns anos antes de compor suas Meistertiche: “Mas o que é a beleza absoluta, eu não sei. Ninguém sabe, exceto Deus”.

Intelectualizar a melancolia, humanizar a geometria

Exemplo de “Melancholici” de que fala Panofsky

Panofsky filia Melancolia I a duas fórmulas iconográficas muito comuns na época: as “melancholici”, gravuras populares em calendários e que circulavam pela Europa, e as “typus geometriae”, que decoravam tratados filosóficos e enciclopédias. De umas teria herdado a figura da melancolia, de outras as ferramentas e elementos ligados à Geometria, ciência nobre, exata e distante das emoções humanas. De modo que por um lado teria “intelectualizado a melancolia” e, por outro, teria “humanizado a geometria”.

Exemplo de “Typus geometriae” de que fala Panofsky

Essa humanização da Geometria também tem a ver com o não saber implicado em qualquer saber. Quanto mais sabemos, mais descobrimos o infinito não saber diante de nós, ou seja, buscar o conhecimento é um trabalho eterno e angustiante, pois não importa o quanto se saiba, será impossível tudo saber. Não é à toa que a perplexidade da figura alada se traduz, concretamente, pelos instrumentos inertes, sem uso, em sua mão.

Detalhe de Melancolia I

Há várias significações possíveis para os muitos outros elementos na gravura (Panofsky analisa longamente as chaves penduradas em seu cinto, por exemplo), porém chamam a atenção a repetição da ampulheta, símbolo da finitude humana, de seu breve tempo de existência, como já dito e repetido nas análises anteriores; e o quadrado mágico, símbolo de engenho e perfeição.

Os quadrados mágicos eram muito populares no século dezesseis. Sua perfeição consistia em que a soma de uma linha reta, fosse na vertical, horizontal ou diagonal, resultasse no mesmo número.

No quadrado mágico de Dürer, o 34 também é resultado de outras somas, como os quatro números centrais, por exemplo, o que o configura ainda mais perfeito. A última linha também chama atenção, afinal, 4 (D), 1514 (data da gravura) e 1 (A): Dürer, Albretch.

Para Dürer tal perfeição e beleza é alcançável numa realização, como o quadrado mágico, mas nunca de maneira absoluta, prerrogativa divina.

Pouco tempo depois de compor Melancolia I, ele escreveria em um tratado: “Quanto à geometria, pode provar a verdade de algumas coisas; mas com relação a outras coisas, devemos nos resignar à opinião e julgamento dos homens”. “Opinião” e “julgamento” humanos em contraposição a “provar a verdade” da geometria. E, sobre a opinião e o julgamento dos homens, “a mentira está em nosso entendimento, e as trevas estão tão firmemente confinadas em nossa mente que até mesmo nosso tatear fracassará”.

Os dois animais que aparecem na gravura simbolizam essa visão melancólica acerca do nosso entendimento. O morcego, que carrega nas asas a palavra, aparece no crepúsculo, hora melancólica e sombria; o cão é mais susceptível a feitiços de desânimo e de loucura, além de possuir um semblante tristonho quando contrai as sobrancelhas. Um berra, o outro dorme diante da angústia das figuras aladas.

Angústia e vertigem: a agonia do não saber

Em seu O conceito de angústia, Soren Kierkegaard vê no pecado original, esse mito fundador da condição humana, uma alteração fundamental na criação divina, criando nela um “estado de imperfeição”. Dito de outro modo, a imperfeição humana não é, em nenhuma medida, imperfeição da criação divina, mas efeito da liberdade humana que, ao agir, cria imperfeição em si.

Para Kierkegaard, a angústia é a possibilidade de liberdade e está dividida em dois tipos, a saber, a objetiva e a subjetiva, sendo a objetiva o “reflexo da pecabilidade da geração do mundo inteiro” e a subjetiva “a angústia que está na inocência do indivíduo que corresponde a de Adão”. Uma, portanto, revela-se geral e atemporal, enquanto outra é específica e histórica.

Quando ele fala da sensualidade, por exemplo, busca entender como ela teria se tornado pecaminosa, dando a compreender que nem sempre o foi. É com a liberdade dos primeiros seres humanos e seu conhecimento sobre o Bem e o Mal que a sensualidade passa a ser vista como pecado. Depois de Adão, o pecado tem nome e a angústia passa a ser concreta. Por isso, mais significativa.

Ao tratar dela, diz o filósofo dinamarquês:

“Angústia pode-se comparar com vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente tontura. Mas qual é a razão? Está tanto no olho quanto no abismo. Não tivesse ele encarado a fundura!… Deste modo, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para sua própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se. Nesta vertigem, a liberdade desfalece.” (KIERKEGAARD: 2015, p. 67).

De que síntese fala Kierkegaard? Da síntese entre corpo e alma, entre a nossa parte terreal e a nossa parte celestial. Não é justamente com isso que o renascentista Dürer está às voltas? Curvado diantes das artes práticas, embora anseie pela matemática teórica; obcecado pela ideia de eternidade e porvir, embora profundamente fincado na fragilidade humana e na finitude e limitação de sua capacidade intelectual.

Detalhe de Melancolia I

Por isso muitos comentadores têm associado à figura alada ora ao próprio artista, ora a Leonardo da Vinci, ideal de artista para Dürer, durante um período de incriatividade.

Não é à toa que Panofsky afirma ser essa gravura um autorretrato espiritual de Dürer. Envolto por tudo o que sabe, pelas artes que domina, pelas realizações de que é capaz, tudo o que vê é a vertigem da liberdade, a angústia, a sua melancolia.

E se “não tivesse ele encarado a fundura!…”. Talvez a Apreensão o tivesse possuído de outras formas, talvez a sua angústia fosse menor ou maior, talvez não tivéssemos a beleza das Meistertiche, talvez a beleza tivesse outra forma na arte ocidental. Não sabemos.

Enfim, as três faces da solidão

O que é facilmente constatável é a beleza dessas três gravuras e a riqueza de possibilidades de análise que evocam, juntas ou separadas. Apenas Erwin Panofsky apresenta muitas outras possibilidades de análise diferentes desta, sem falar em outros comentadores e analistas.

Por isso, digo o que evocam em mim o cavaleiro, o eremita e o melancólico: três faces da solidão no olhar atento de um artista singular que via em si um espírito de melancolia, antecipando, de algum modo, uma figura tão comumente representada na modernidade: o gênio atormentado e saturnino.

(Esta é a terceira e última parte de um texto único sobre as obras-mestras de gravura de Albrecht Dürer. Se o tema lhe interessa, siga o perfil aqui no Medium e no Instagram).

Bibliografia:

GOETHE, Johan Wolfgang von. Fausto — uma tragédia (segunda parte). 5ª edição. São Paulo (SP): Editora 34, 2017.

KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. 3ª edição. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2015.

MAZZARI, Marcus Vinícius. A dupla noite das tílias — História e natureza no Fausto de Goethe. 1ª edição. São Paulo (SP): Editora 34, 2019.

PANOFSKY, Erwin. The life and art of Albrecht Dürer. 1ª edição. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1955.

--

--