Fachada de residência na Servidão Lageanos, na Serrinha. (Foto: Matheus Vieira)

Oito anos de luta por direito à moradia

Mais de 85 famílias da Servidão dos Lageanos continuam sem titularidade de terra

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12 min readDec 14, 2017

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Por Eduarda Hillebrandt e Matheus Vieira

Em 2009, a UFSC abriu uma ação de reintegração de posse de um terreno de 14 mil m² na Serrinha, bairro Trindade, onde moram cerca de 100 famílias, das quais 87 estão registradas pela prefeitura. O terreno em questão fica entre a rua Marcus Aurélio Homem e a caixa d’água da Casan que abastece a região, entrecortado pela Servidão dos Lageanos. Na esquina, um marco de cimento coberto por mato delimita as divisas, que foram ultrapassadas ainda na década de 1970. Além de afastado do campus da Trindade, o terreno possui declive e fica em área de preservação ambiental. Por isso, nunca houve planos para esse trecho, que foi adquirido como anexo da Moradia Estudantil.

O processo iniciou na gestão de Álvaro Prata (2008–2012), quando a reitoria achou que seria uma boa ideia contestar a terra na Justiça Federal. O pedido de reintegração partiu do pró-reitor de Infraestrutura, João Batista Furtuoso. Aposentado, ele ainda acredita que fez o que precisava ser feito para proteger o patrimônio da universidade. “Nunca estive na região, não conheço o pessoal”, disse. O pedido da Pró-Reitoria de Infraestrutura, hoje uma secretaria vinculada à Pró-Reitoria de Administração, passou pelo chefe de gabinete José Carlos Petrus, que não o leu e afirma que “apenas dava encaminhamento aos processos.”

O pedido de reintegração foi entregue à 3ª Vara Federal de Santa Catarina em agosto de 2009 e assinado pelo procurador-federal que atuava na UFSC na época, Milton Luiz Gazaniga de Oliveira. O documento cita que as ocupações irregulares oferecem risco à comunidade universitária, e que concentram tráfico de drogas — fatos não comprovados. Procurado, Milton se negou a comentar o caso e explicou que apenas deu sequência aos pedidos da universidade.

Os moradores se sentiram ofendidos pelas acusações nos autos. “Falaram coisas muito ruins sobre a gente lá”, conta a moradora Ilda de Matos, 62 anos. Ilda chegou em Florianópolis em 1980. Lageana, trouxe da cidade natal uma sacola de roupas para tentar a vida na capital. Casou-se, teve a primeira filha e conseguiu uma vaga na limpeza do Hospital Universitário da UFSC (HU). Foram quatro anos pagando aluguel no bairro Saco dos Limões. Para dar conta de todas as despesas, resolveu economizar no ônibus e levava mais de uma hora caminhando até a universidade. Vencida pelo cansaço, resolveu construir casa própria na Serrinha, em uma área desocupada na qual outros cinco lageanos estavam se instalando.

Ilda de Matos espera pela doação da UFSC para reformar sua casa, que preserva a mesma estrutura desde 1985. (Foto: Matheus Vieira)

“Essa época não foi fácil. Às vezes não tinha o que comer em casa, não via minha filha.” Do HU, foi transferida para o departamento de Física, onde trabalhou por 23 anos na limpeza, recepção e portaria. Conta que sofria violência doméstica do marido alcoólatra. “Nunca fui de levar os problema pro trabalho. Já tive dia que fui com o beiço arrebentado e olho roxo, ainda assim cumprimentava todo mundo.” Nem todo mundo diz bom dia. Ilda lembra de professores que passavam reto por ela no corredor.

Levantou a casa em dois finais de semana. Notificado, um segurança do campus subiu a Serrinha de moto para avisar que o terreno era da UFSC. Deu de cara com Ilda. “Quando ele viu que era eu, que era funcionária da universidade, disse para fingir que ele nunca esteve aqui. E eu continuei construíndo.”

Logo chegaram Lucelma, Zenite, Norberto, Santos e outras oitenta famílias. Cada uma construindo sua meia-água para fugir do aluguel que consome o salário.

Até 2004, quando a Casan fez o encanamento, parte do esgoto da rua vertia na beira da porta de Ilda. A casa de madeira preserva a construção original de 1985. Não fosse a constante ameaça de reintegração de posse, usaria o crédito da aposentadoria para reformar a estrutura com tijolo e cimento.

Maria Lucelma se tornou líder comunitária local. (Foto: Matheus Vieira)

A casa de Maria Lucelma de Lima, 57 anos, fica em frente ao terreno de Ilda. As duas iniciaram a construção no mesmo final de semana. Lucelma trocou a estrutura de madeira por alvenaria em 2000, mas o reboco e a pintura ainda estão pendentes. “Se tu não fazes reboco, começa infiltrar água e mofar a casa, não dá pra deixar assim.”

Quando Lucelma soube que havia construído em terra da universidade, a esperança do usucapião se esvaiu — a propriedade por usucapião não serve para terrenos públicos. O primeiro passo foi garantir que a comunidade estava, ao menos, segura. Tudo apontava para uma convivência pacífica. Em documentos de 1988, a Prefeitura Universitária e a Procuradoria Federal junto à UFSC autorizam alterações na cerca divisória e deslocamento de postes, o que abriria espaço para a passagem de carros. Depois de um mutirão da vizinhança para construção do calçamento, e com o material fornecido pela prefeitura, o atalho entre as casas virou servidão — a Servidão dos Lageano, como os moradores chamam.

Estado Incapaz

As intervenções da Casan e da Celesc na infraestrutura da região se deram ao longo da década de 90, através da articulação da associação de moradores formada em 1987. A última alteração foi o encanamento em 2004, que não supre mais a demanda da área. Por ser terra da União, a Servidão foi excluída do zoneamento da Prefeitura para gerenciar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do complexo do Morro da Cruz.

“Por isso que a gente não entende esse processo, sabe? Não pegamos terreno de famílias, a universidade não usava aqui para nada. Primeiro deixam a gente se instalar, e depois querem nos tirar?”, questiona Lucelma. Natural de Joaçaba, Lucelma não nasceu em berço de ouro. Para ajudar a família, trabalhou desde os sete anos de idade como babá. Aos 16, conseguiu o primeiro emprego de carteira assinada em um frigorífico. Chegou ainda jovem em Florianópolis, onde trabalhou como empregada doméstica e, depois, zeladora. Hoje está aposentada e com quatro filhos encaminhados na vida.

Ao se tornar líder comunitária, aprendeu a não depender de pessoas de fora da comunidade para trazer melhorias e a expor as demandas de formas claras. Para ela, os projetos não podem chegar sem a participação dos moradores. “Deixa nós participar, porque quando eu digo o que eu quero, eu participo, e quando participo, eu pertenço. A gente tem que pertencer. Não adianta tu ter e não pertencer.”

Num crescimento orgânico do assentamento, a Servidão dos Lageanos hoje vai muito além da fachada colorida de alvenaria. Há novas construções declive abaixo, adentrando a faixa de terreno antes do muro que cerca a caixa d’água da Casan. Nesta área, o esgoto ainda corre a céu aberto, formando uma espécie de riacho no qual galinhas e cachorros passeiam. Quando chove, o fluxo d’água alaga os fundos do terreno, envolvendo as palafitas das casas mais recentes e encharcando o solo.

Josiele Chaves da Silva é uma das moradoras desse trecho. A construção original de sua casa foi consumida por um incêndio em outubro de 2012. O fogo começou com um curto-circuito no chuveiro, e as labaredas tomaram a casa vizinha enquanto os Bombeiros procuravam uma forma de alcançar a área. Com a ajuda dos vizinhos, as mangueiras foram estendidas entre os quintais e escadarias. Josiane terminou a reconstrução e se mudou em 2016. O vizinho, Jorge, ainda está finalizando as obras.

Tramitação na universidade

Parte dos moradores das construções recentes trabalham como funcionários de empresas terceirizadas na UFSC — ao menos dez pessoas, pelas contas da vizinhança. Um deles é Norberto Nunes, que trabalha pelo Grupo Provac na zeladoria do HU. No dia anterior ao da audiência, estava incerto de que iria conseguir a dispensa para ir à Justiça Federal. “Olha, seu Norberto, é bom que todo mundo vá, porque se você ouve diretamente deles, depois não tem diz-que-me-disse.” Lucelma o interpelou na manhã de terça-feira, 23 de novembro. No dia seguinte, entre crianças, idosos e adultos, cerca de 50 moradores participaram da audiência.

Esperava-se uma decisão final. Lucelma, que tomou a dianteira do processo, mal dormiu na noite anterior. Na verdade, enquanto os moradores forem réus da ação, o sono dificilmente será pleno. No entanto, tanto o gabinete de Roselane Neckel (2012–2016) quanto de Luis Carlos Cancellier (2016–2017) sinalizou pela doação do terreno aos moradores.

A equipe de Neckel soube do processo pelo noticiário. “UFSC move reintegração de posse contra moradores da Serrinha.” Às 6h da manhã de 11 setembro de 2012, uma quarta-feira, a Servidão foi tomada por cerca de trinta policiais federais e dez oficiais de justiça, acompanhados da imprensa local. Foram entregues 87 mandados de citação — um documento que informa o prazo para que o réu do processo de reintegração de posse se defenda no tribunal.

Santos Vargas teme perder a casa. (Foto: Matheus Vieira)

Três policiais e um dos oficiais bateram no portão de Santos Vargas. Ele acordou com aos gritos de “polícia!”, calçou os chinelos e correu para a porta. “O que foi, tem bandido se escondendo aqui?”, perguntou, assustado. Os netos de 3 e 6 anos choravam ao fundo, questionando se teriam que se mudar realmente. “Vamos ter que ir pro pombal da Ângela?” diziam, em referência às moradias populares do bairro Chico Mendes, na parte continental de Florianópolis, construídas na prefeitura de Ângela Amin.

Quando recebeu o mandado, sentiu um amargo de arrependimento. Há 20 anos, vendeu uma casa escriturada em Palma Sola — município do oeste catarinense com sete mil habitantes — para comprar uma casa na Serrinha. Na época, foram 12 mil reais. A casa para a qual se mudou com a família era precária. Botou tudo abaixo e aos poucos ergueu um sobrado de dois pisos. Seu dia tinha três turnos: era zelador em um condomínio na Avenida Rio Branco durante o dia, fazia bicos como pintor depois do expediente e, de noite, reformava a casa.

Assim como Vargas, outros moradores tinham despendido sua poupança na compra dos terrenos em litígio. A Defensoria Pública assumiu a defesa de alguns moradores, e outros procuraram advogados particulares. Para conter a reintegração, era preciso entrar com recurso para cada uma das 87 famílias intimadas. Por isso, a defesa passou a atuar em conjunto.

Outra forma de conter o processo seria marcar uma reunião com a advogada-geral da União que atuava na defesa da universidade, Fernanda Carmona. Não houve negociação. “Façam a defesa, e depois conversamos. Inclusive, seu prazo já está correndo”, teria dito aos advogados da comunidade Alexandre da Rosa e Gabriel Luiz Barini.

O chefe de gabinete de Neckel, Carlos Vieira, sentiu a mesma resistência na negociação ao tentar dialogar com a AGU. Ele conta que Carmona queria levar o processo até a reintegração. A procuradora não retornou o contato da reportagem para comentar situação.

Com a negativa da AGU, o processo foi para a primeira audiência ao final de 2013. A Reitoria solicitou a suspensão do processo para descobrir mecanismos para doar aquela terra. No entanto, apenas o Conselho Universitário (CUn) poderia aprovar a doação enquanto instância deliberativa da UFSC. Carlos Vieira iniciou a mobilização para colocar o assunto na pauta. Era preciso mobilizar a Prefeitura para fazer a regularização fundiária e convencer os representantes do CUn.

O parecerista da votação foi o professor Paulo Pinheiro Machado, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), que estuda questões fundiárias e estava inclinado à doação. O parecer foi positivo. A votação entrou em pauta no CUn apenas em abril de 2016. O esquema de doação foi ajustado de tal forma que a Prefeitura recebesse o terreno para regularizar, arcando com a contrapartida em forma de serviços públicos.

Houve dois entraves para votar a pauta na sessão ordinária de 26 de abril de 2016. O primeiro foi antecipar a questão da Serrinha entre oito pautas, para não correr o risco de um segundo adiamento. O segundo, foi liberar a entrada dos moradores. Carlos Locatelli, representante do Centro de Comunicação e Expressão (CCE) no conselho, deu um puxão de orelha nos colegas. “Quando a gente fala de dificuldade em estreitar laços com a comunidade, é esse desse tipo de postura que estamos falando.”

Entraram pela porta da frente, com direito de palavra ao advogado Alexandre da Rosa. Os conselheiros passam a sondar o parecer de Paulo Pinheiro. Não estavam convencidos de que a doação era a melhor opção e sugeriram uma contrapartida financeira da Prefeitura. A bancada de Neckel explicou que a doação geraria um custo para a Prefeitura, que teria que investir na infraestrutura da região e organizar a papelada da titularidade. Vencida a questão da contrapartida financeira, passaram a discutir outros pedidos. Os planos eram altos. Queriam um projeto de urbanização que incluísse a extensão de serviços públicos para a área.

“Quando a gente aperta demais a titulação da terra, a gente força uma situação de ilegalidade da população.”

Paulo Pinheiro Machado

Gregório Varvákis foi um dos últimos conselheiros a falar. “Não gosto da coisa dada por dada. Precisamos avaliar melhor as contrapartidas. Hoje, eu votaria não.” E emendou um pedido de vistas ao processo, o que é considerado uma ofensa no CUn e atrasaria em meses a doação do terreno. Temia que os moradores deixassem os terrenos após a doação, e queria garantir a proibição da venda dos terrenos por 30 anos, através de um mecanismo chamado gravame.

Paulo Pinheiro explica que tentou ter cautela nas exigências. “A experiência é de que quando a gente aperta demais a titulação da terra, a gente força uma situação de ilegalidade da população. Muitas vezes a legislação extremamente detalhada acaba mais prejudicando do que protegendo a população da especulação imobiliária. Não há lei urbana que dê conta disso.” Seu parecer era baseado na legislação do programa Minha Casa, Minha Vida — fundamento de regularização fundiária urbana em casos similares. Essa lei prevê um gravame de dez anos.

Este ano, a Lei nº 13.465 regulamentou a regularização fundiária urbana em todo o país. Com a mudança, a Prefeitura deixa de ser solidária no processo e passa a ser executora obrigatória da escrituração dos terrenos. Esta legislação garante também que uma casa construída sobre uma laje tenha titularidade própria, o chamado direito de laje. A Servidão dos Lageanos será um laboratório de aplicação das novas regras.

Lucelma voltou abatida daquela tarde, e passou a noite matutando sobre o que fazer. No dia seguinte, ligou para todos os contatos que tinha na universidade para tentar encontrar Varvákis. Não conseguiu. Ao final do dia, recebeu uma ligação de Carlos Vieira. Era uma notícia boa: Vieira avisou que conseguiu convencer o conselheiro. Ele assinaria o parecer junto de Paulo Pinheiro. Na semana seguinte, a doação foi aprovada pelo CUn.

O próximo passo seria a aprovação do Conselho dos Curadores (CC), que responde pelo patrimônio. Para essa esfera, era preciso um novo mapeamento da região e um parecer técnico do setor patrimonial da UFSC. A papelada parou na mesa do engenheiro agrimensor Ricardo dos Passos, chefe da Coordenadoria de Regularização Fundiária e Predial da UFSC, que fica na Reitoria II. E por lá ficou. A coordenadoria tem uma equipe defasada desde sua criação, em 2014.

Na manhã da última audiência, Ricardo Passos interrompeu as férias para ir até a Reitoria avaliar o caso. O mapeamento estava concluído, mas o parecer técnico ficaria para depois das férias. Durante a tarde, o engenheiro e Áureo Mafra foram para a 3ª Vara Federal de Florianópolis explicar porque a doação ainda não foi aprovada nas instâncias da universidade. Não foi nenhuma surpresa para a comunidade, embora tenha sido uma baixa.

A novidade da audiência de quarta-feira foi o projeto arquitetônico da Prefeitura de Florianópolis. Parte da equipe da Secretaria de Infraestrutura dedicou os últimos meses ao projeto, que ganhou modelagem em três dimensões na qual passeia um desenho de Lucelma. Encanamento, calçamento e escadas entre as casas, postes auxiliares para eliminar os gatos na energia elétrica. Os moradores gostaram. Lucelma também gostou, sempre quis a Servidão linda como a Beira Mar Norte e o projeto era o mais próximo disso. Sentiram falta apenas dos serviços públicos que seriam instalados na região.

Prefeitura aguarda doação para resolver esgoto aberto.

O superintendente de Habitação do município, Lucas Arruda, atribuiu o projeto mais modesto às limitações financeiras. “Assumimos esse projeto com a condição de que fosse pé no chão. A universidade tem uma capacidade muito alta de sonhar, mas infelizmente não podemos resolver todos os problemas.” O custo previsto para as obras é de R$ 849,4 mil, somando verba da Prefeitura, Casan e Celesc. Como a região ficou de fora do PAC, não se sabe de onde virão os recursos.

A população da Serrinha precisa descer aos bairros vizinhos para ter acesso a quase todos os serviços. As crianças completam o ensino fundamental na Trindade, os atendimentos são concentrados no posto de saúde da Trindade, o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) recebe os moradores na Trindade. Para o superintendente, são obras desnecessárias e descartadas do projeto.

Outro ponto-chave da questão são as moradias que chegaram após o processo. A lista de réus foi retirada de um cadastro feito na comunidade em 2012, as 87 famílias. “Não podemos regularizar casas de fora do processo, porque senão amanhã terão outras pessoas se mudando para a área”, fala Lucas. Para a Defensoria Pública, todos que estão residindo na área devem receber a titularidade da casa.

No próximo ano, o processo completa dez anos. O marco de cimento da UFSC continua plantado na esquina da Servidão. Quando a reintegração acontecer, Lucelma quer colocar uma placa no marco contando a história da luta pela Servidão. Neste dia, quando houver placa, encanamento e escritura, a vizinhança deve dormir tranquila.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC