Sobre a estética da imortalidade e o choque contemporâneo

Eduardo Biz
5 min readNov 24, 2013

Phillip Toledano é um grande artista. Entre sua rica produção, o projeto que mais se destaca é uma trilogia (ainda inacabada) sobre a mortalidade.

A primeira parte deste projeto, “Days With My Father”, ficou muito famosa quando foi lançada em 2010. Trata-se de uma série de fotografias que Toledano fez de seu pai em seus últimos anos de vida, sofrendo de perda de memória. São imagens emocionantes, acompanhadas de textos extremamente sensíveis, que resultam em pura emoção e enchem os olhos de lágrimas.

A sequência da trilogia — sobre a qual quero me aprofundar nesse texto — é “A New Kind of Beauty”, que traz imagens desta vez focadas na questão da imortalidade. Aqui, os protagonistas das fotografias são pessoas que passaram por cirurgias plásticas radicais, em busca da perfeição estética e da eterna juventude.

Com efeito chiaroscuro, estes retratos quase remetem a uma beleza clássica, não fossem pelas modificações faciais, implantes, lifts, injeções de colágeno, e todas as suas possíveis combinações. A inspiração de Toledano é o alemão Hans Holbein the Younger, conhecido por pintar os retratos mais realistas do século 16.

As reações a essas imagens são diversas: susto, surpresa, nojo, piedade, risos, repulsa, admiração, desdém… Seja o que for, é inegável que o primeiro instinto ao se deparar com seres tão familiares — e, ao mesmo tempo, tão distantes daquilo que estamos acostumados a conhecer — é uma espécie de choque.

E temos de admitir: hoje em dia, é rara a estética capaz de chocar. Como pode a sociedade contemporânea olhar torto para essas imagens? Logo ela que se diz tão moderna e aberta ao novo; que já viu de tudo e aprendeu a admirar as vanguardas da arte; que se assume plural e confortável com a diversidade?

Ao longo da história da humanidade, cada época se escandalizou com alguma manifestação estética, seja vindo da moda, das artes plásticas ou da subcultura. Ao longo dos anos, porém, a evolução do pensamento sempre passou a assimilar e incorporar essas novidades.

Pense na estética punk, por exemplo, e como ela foi agressiva para os anos 1970. Hoje, é um movimento totalmente agregado à cultura pop. Aliás, um breve olhar histórico já revela diversos outros momentos de choque e escândalo que hoje não assustam nem ao Papa Francisco:

Mulheres tatuadas causando tumulto no final do século 19
No seriado Downton Abbey, Lady Sybil é recriminada por usar calças em pleno 1912
Leila Diniz afrontando o Brasil nos anos 1960. “Transo de manhã, de tarde e de noite.”
O grafite, antes visto como arte marginal, hoje no interior de luxuosas propriedades

São tabus que foram digeridos pela sociedade. Na cultura pop, a tríade “sexo, religião e morte” sempre foi (e sempre será?) sinônimo de falatório. Madonna sabia bem disso quando simulou masturbação no palco, queimou cruzes e sensualizou com santos negros nos anos 1980. Mas a sexualização dos videoclipes daquela época parece bem inofensiva hoje em dia.

O inaceitável de ontem é o bem aceito de hoje. Em “História da Feiura”, o semiólogo Umberto Eco avalia que os conceitos de belo e feio são relativos aos vários períodos históricos e às várias culturas:

“Observamos incrédulos as fotos das atrizes dos filmes mudos sem entender como seus contemporâneos podiam considerá-las fascinantes e não poderíamos, por outro lado, incluir uma mulher rubenesca em um desfile de moda de atualmente. Mas não é apenas o passado que resulta incompreensível: no mais das vezes, os contemporâneos mostram-se incapazes de apreciar o futuro, ou seja, as propostas muitas vezes provocativas apresentadas pelos artistas.”

E é exatamente disso que falam as fotografias de Toledano. Segundo o artista, sua intenção foi representar um lado bastante particular da beleza dos nossos tempos, que mistura métodos cirúrgicos, arte e cultura pop. Seria esta a vanguarda da evolução estética humana? O feio de hoje passará a ser belo daqui a 20, 50, 100 anos?

A russa Valeria Lukyanova e o americano Justin Jedlica, conhecidos como “Barbie” e “Ken” da vida real.

Nietzsche aborda essa questão em “Crepúsculo dos Ídolos”:

“No belo, o ser humano se coloca como medida da perfeição; adora nele a si mesmo. No fundo, o homem se espelha nas coisas, considera belo tudo que lhe devolve a sua imagem. O feio é entendido como sinal e sintoma de degenerescência. Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição… tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor ‘feio’. O que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo.”

A polêmica que o trabalho de Toledano causa não é pouca, vide os comentários dos leitores deste blog argentino que postou sobre o assunto. É uma obra que coloca em pauta nossa noção de realidade. Outra artista muito conhecida pelas modificações corporais — porém com outra pegada — é ORLAN, que no início dos anos 1990 começou a fazer procedimentos cirúrgicos a fim de usar o próprio corpo como plataforma de sua produção artística.

Obras de arte que provocam reações avessas aos nossos padrões de belo são muito definidoras na história da humanidade, e são até capazes de gerar efeitos psicossomáticos como vertigens, falta de ar e alucinações.

Mas são elas as principais responsáveis por colocar em discussão os próximos passos do nosso tempo, ainda assombreados por preconceitos de quem teme a evolução.

“Esta beleza universal que a Antiguidade derramava solenemente sobre tudo não deixava de ser monótona; a mesma impressão, sempre repetida, pode fatigar com o tempo. O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada.” (Victor Hugo em “Cromwell”)

(Texto publicado originalmente no Ponto Eletrônico, em abril de 2013)

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