Por que você quer se parecer com um homem? — Uma pessoa transmasculina responde.

Zoë Masan
3 min readJan 28, 2017

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Eu não me pareço com um homem cis. Por vezes, performo feminilidade e por vezes não. Eu compro roupas ditas masculinas e femininas. Eu sou afeminado demais pra ser um homem cis e masculinizado demais pra ser uma mulher cis. Eu literalmente não me encaixo.

Minhas pernas podem ser ou não peludas, posso esconder ou não esconder meus seios, posso usar maquiagem ou não e não importa o tipo de roupa que eu use, NUNCA nada do que eu faça ou deixe de fazer será o suficiente para que eu seja reconhecido pelo o que eu sou.

Muitas vezes me é dito “até seu rosto nu, sem pintura, é o rosto de uma mulher. Você é uma MULHER.” Nunca, em momento algum foi me dada uma escolha. Desde quando souberam da minha genitália já me foi imposto um gênero, todos os papéis e opressões que ele possui. Há algo de errado nisso. Eu não escolhi, escolheram por mim. Há algo de errado nisso. Eu não sou mulher, nunca fui e nunca serei. Quando tomei consciência disso percebi havia uma outra opressão com a qual eu precisaria lidar, a transfobia.

Toda vez que perguntam “Por que você quer ser um homem?” ou afirmam que continuo sendo uma mulher cis é mais uma microagressão. Micro que faz parte de macro chamado sociedade cisnormativa que deslegitima meu direito de ser transgênero até as últimas consequências. As microagressões são muitas. Quando me culpabilizam dizendo que se fizer uma transição porque estarei buscando uma passabilidade cis e uma adequação aos papeis de gênero que tanto me oprimem e estarei me tornando uma aberração, uma espécie de mulher adulterada ou um homem de mentira. Quando dizem que se não fizer transição meu gênero não será válido o bastante porque terei uma suposta passabilidade cis. Quando tratam minha transmasculindade como patologia. Porque, afinal, eu preciso de ajuda. Sou só uma mulher que odeia o próprio corpo e preciso de acolhimento e compreensão para que um dia, eu possa finalmente entender que nunca fui trans e que isso não é válido.

Se você é uma pessoa transfeminina você sofre a hostilização direta e sem censuras de pessoas que dizem que você é uma farsa. Se você é uma pessoa transmasculina você sofre a hostilização velada de pessoas que te tratam como um ser doente que precisa amar seu próprio corpo. Essas microagressões nós trans sofremos dentro do “acolhedor” espaço do feminismo. Homens trans e pessoas não-binárias transmasculinas são apenas mencionados quando querem nos tratar como doentes. A minha voz enquanto pessoa transmasculina foi negada mesmo em espaços nos quais ela foi feita para ser ouvida. Por que falar por mim quando existem pessoas dizendo tudo o que eu sou e tudo o que preciso. Elas deixam tudo bem claro: O que eu sou? Uma mulher. O que eu preciso? De ajuda para descobrir isso. Ninguém me perguntou nada e de novo, escolheram por mim.

Eu sou uma pessoa transmasculina. Eu volto pra casa tarde da noite com a chave entre os dedos, morrendo de medo de ser atacado por algum homem cis. Eu convivo com a misoginia todos os dias e continuo não sendo uma mulher. Minha identidade é válida mas a misoginia e transfobia que eu sofro nunca é colocada em pauta. O silenciamento é a realidade e tudo o que eu ganho são discursos que tem como finalidade a patologização da minha transgeneridade.

Todas essas situações são formas de me dizerem que não importa se eu escolher a transição ou não, sempre tentarão me empurrar a cisgeneridade guela abaixo e sempre irão me culpar pelas imposições cisnormativas que me oprimem. Acho que ser trans é sempre se sentir culpado por tentar ou não tentar atender às expectativas cisgêneras e binaristas do que é ser um homem ou uma mulher. Mas o que as pessoas cis esquecem é que nós trans não queremos atender às suas expectativas de gênero, não queremos e nunca vamos ser cis e temos muito orgulho disso.

Respondendo a pergunta do início do texto: homens trans e pessoas transmasculinas não buscam ser algo, essas pessoas são.

“Ela” não vai voltar porque “ela” nunca chegou a existir.

Texto dedicado às pessoas não-binárias transmasculinas, aos homens trans e ao Mês da Visibilidade Trans. Porque em tempos de “Destransicionando” precisamos fazer nossas vozes serem ouvidas.

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Zoë Masan

Jornalista, comunicóloga, pesquisadora de gênero, negra, trans não-binário e bissexual