Diário de Beira | Início da despedida
Beira, 17 de abril de 2019
A chuva prevista durante todo o dia chegou somente à tarde. Nós estávamos no abrigo quando a ventania começou. Muitas crianças saíram correndo. Várias tremiam. Algumas mães também estavam com medo, mas conseguimos fazer a nossa roda de despedida e as crianças foram se acalmando.
À noite a chuva veio forte. A preocupação de todos era se as barracas aguentariam. Não são exatamente barracas, mas estruturas de bambu fino com uma lona azul por cima. Tudo muito frágil. O vento da tarde já balançava todas as lonas.
Deu tudo certo. A chuva forte que caiu em Beira não atingiu o abrigo.
Hoje, no meio das atividades, a chuva voltou e as crianças ficaram bem tranquilas. Como não havia relâmpagos nem era uma chuva tão forte, fomos nos abrigar debaixo de uma mangueira. Ali cantamos nossas músicas e finalmente aprendi algumas canções moçambicanas:
“Toma laranjinha,
Toma lá toma lá
Toma laranjinha
O limão já não há
Passou um rapaz de calça azul
Chapéu ao lado
A cheirar bacalhau. Toma!
…
A menina Isabel
Ensina o rapaz
A menina Isabel
Ensina o rapaz
O rapaz é burro
Não sabe namorar
Com o chapéu na cabeça
Não sabe namorar.”
Cantamos e dançamos até o momento de voltarmos para a roda. A chuva já estava diminuindo e no céu um arco-íris despontava.
A roda está ficando linda. As crianças já sabem o que vai acontecer e algumas até antecipam as coisas que faremos.
A chegada tem sido também cada vez mais tranquila. As crianças nos recepcionam e algumas já cantam e dançam. Muitas vêm ao nosso encontro para nos dar as boas- vindas.
As mães têm aparecido com mais frequência nas rodas das crianças. Elas costumam pedir para que façamos oficinas com elas. Muitas são bem novas, algumas com apenas 16 ou 17 anos. Elas se divertem muito quando entram na roda e aproveitam todos os minutos que podem. Alguns pais também aparecem, mas o número é bem menor.
…
Para nós as coisas também estão funcionando bem. Entramos no ritmo. Trabalhar com a Diana tem sido um grande aprendizado. Tenho aprendido muito sobre o trabalho com a arte. E a Diana é incrível. Uma paciência divina. Muitas vezes começamos a oficina com 25 crianças e no final temos 60 — e tudo fica bem. Ela sempre tem um plano B.
Como o espaço da tarde é bem pequeno e temos de 5 a 6 grupos, trabalhamos bem próximos das outras turmas. Muitas vezes a Diana e eu ficamos bem perto dos pequenos e, na hora dos ritmos, temos que nos concentrar para não exagerarmos.
Ah, tem sido muito bom ver cerca de 200 crianças espalhadas e concentradas em suas atividades. Algumas ficam de boca aberta ao verem suas mães cantando, dançando e pulando corda! Os pequenos parecem não acreditar.
Certas crianças ainda estão com feridas enormes e me pergunto quando elas serão totalmente curadas. Trabalhamos com duas crianças albinas e dói ver a situação delas. Estão com a pele bem queimada e têm muitos machucados. A mais velha usa uma capulana para se cobrir. Ontem ela chegou com os cabelos bem arrumados. Estava linda! E claro que parecia toda feliz por estar bem penteada.
A verdade é que nosso trabalho já está quase acabado. Estamos cansados. Muitas outras organizações também estão se preparando para partir.
Mas a sensação de dever cumprido e de que Moçambique está se esforçando para a recuperação do país é nítida. Os postes de luz estão sendo reerguidos. Os telhados de várias escolas começam a ser refeitos. O desejo é que o povo moçambicano possa transformar essa catástrofe em uma oportunidade…
Um forte abraço, ainda de Moçambique!
Reinaldo Nascimento, cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, coordena uma intervenção de pedagogia de emergência na região de Beira, em Moçambique
[Colabore com a campanha de financiamento coletivo em prol da intervenção em Moçambique. Veja aqui como contribuir.]