Diário de Beira | Moçambique

Pedagogia de Emergência no Brasil
TransformAÇÃO
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4 min readApr 11, 2019

10 de abril de 2019

Reinaldo Nascimento em ação em campo de desabrigados na região de Beira

“O vento não parava de soprar.” “Nunca vimos algo parecido. Tudo parecia que ia desaparecer debaixo d’ água.” É com frases assim que muitos moçambicanos de Beira tentam explicar o que aconteceu quando o ciclone Idai devastou a região. E a verdade é que até agora muitas casas ainda continuam debaixo d’ água. Para muitos especialistas, o fenômeno pode ser comparado ao Katrina, que castigou Nova Orleans, nos Estados Unidos, em 2005.

Não se sabe ao certo o número, mas fala-se em mais de 2 milhões de desabrigados por aqui. Muitos deles estão vivendo em abrigos de acolhimento, onde campanhas de vacinação tentam deter o avanço da cólera.

Quase um mês após a passagem do ciclone, a energia elétrica ainda não foi completamente restabelecida. As pessoas que vivem à beira da estrada usam lampiões ou fazem fogueiras para terem um pouco de luz durante a noite.

Aqui em Beira, os moradores estão sempre pedindo comida. As crianças muitas vezes nos pedem bolachas. Muitas mães nos dizem que estão há dois dias sem comer. Algumas pedem para que não façamos exercícios intensos durante as atividades com as crianças — depois elas não terão o que comer para repor as energias.

Meus colegas do time internacional de pedagogia de emergência e eu estamos trabalhando em dois abrigos. Um fica em Beira mesmo. O espaço usado é um centro de formação para professores, que conta com uma área livre bem grande: duas quadras e um gramado. Podemos usar a tenda da Save the Children para os menores e os outros espaços para os maiores.

Desenhos livres ajudam as crianças a expressarem sentimentos

Pintamos aquarelas, fazemos desenhos de formas e desenhos livres. E também trabalhos manuais, euritmia, jogos e muitas cirandas. Os menores são acolhidos por dois educadores que se dedicam exclusivamente a eles.

As crianças estão bem felizes e os pais sempre se aproximam e pedem para fazer parte das atividades. Às vezes, preciso pedir para que eles se acalmem, pois em muitos momentos acabam atrapalhando. Queremos muito fazer um grupo de pais. Até já tentamos, mas toda vez que aparece um carro ou caminhão diferente, eles saem correndo na esperança de que seja uma organização trazendo alimentos.

O calor é intenso e sempre estamos buscando áreas com sombras. Tarefa difícil, pois onde há sombra sempre há gente sentada ou dormindo.

Depois do almoço viajamos cerca de 90 minutos para trabalhar num outro abrigo, chamado Muda. A situação ali é bem mais delicada. A pobreza é maior. Pessoas que perderam tudo se misturam com as que perderam quase tudo. Há pessoas que ficam no abrigo durante o dia, pois acreditam que terão mais oportunidade de conseguir o que comer do que em seus bairros.

A ideia dos organizadores do abrigo é que essas famílias não usem mais esse espaço para esse fim. Sabendo disso, a tristeza dessas pessoas aumenta. Em Muda poucos falam português. Algumas crianças entendem a língua, pois frequentam uma igreja cujo pastor é brasileiro.

Os adultos também se alegram com as atividades propostas pela equipe

Anará (nome fictício) tem 12 anos e não consegue ficar parada. Não consegue esperar, fala ao mesmo tempo que os outros e dificilmente se concentra. Tive a oportunidade de conversar com ela. Ela fala português e sente orgulho disso. Para essa garota é muito duro viver numa barraca. Ela não frequenta a escola e não sabe ler nem escrever. Sempre pede bolacha e fica triste quando dizemos que não temos — e não temos mesmo. Zangada, fala que não vai mais brincar conosco. No outro dia, quando chegamos, sai correndo para nos recepcionar.

Tenho ajudado bastante a Diana Tessari. Ela é argentina e vive na Espanha. Trabalha com educação e terapia artística, e as crianças se encantam com as atividades propostas por ela. Temos também o Mbandi, queniano, que trabalha no Kakuma Camp. Um suíço e uma holandesa completam o time formado por alemães. Dessa vez, o idioma oficial é o inglês.

O internacional time reunido

Tudo está correndo bem. As crianças têm aproveitado e, apesar da falta de tantas coisas, não lhes faltam motivos para acreditar que a situação vai melhorar. Os adultos estão sofrendo mais. Sempre pedem emprego. Eles nos ajudam, mas esperam uma recompensa financeira em troca.

Logo começaremos uma formação para 150 educadores de várias escolas públicas e particulares e de outras organizações. A ideia é que possamos trabalhar com muitos parceiros aqui.

Agradeço a todas e todos de coração pela ajuda e pelas mensagens de carinho! Agradeço também à Maria do Mar, uma portuguesa linda de 6 anos que tem me ensinado algumas músicas.

Reinaldo Nascimento, cofundandor da Pedagogia de Emergência no Brasil, coordena uma intervenção internacional de pedagogia de emergência em Moçambique

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TransformAÇÃO

A Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil trabalha para transformar a vida de crianças e jovens traumatizados por situações extremas.