Diário de Beira | Moçambique

Pedagogia de Emergência no Brasil
TransformAÇÃO
Published in
5 min readApr 13, 2019

12 de abril de 2019

Os dias passam rápido por aqui. O calor é forte e a umidade, intensa. E assim vamos bebendo água o tempo todo. Água que te quero água! Só não podemos beber na frente das crianças: elas sempre pedem as garrafas e até brigam por causa disso. Vejo muitas desfilando com garrafas plásticas como se fossem um troféu. Hoje um garoto estava radiante por ter espremido um limão em sua garrafa de 500 ml. Ficava mostrando seu feito para todos.

Depois de muitos dias atuando com os pequenos, tivemos a oportunidade de trabalhar com 130 educadores de várias cidades da província de Sofala, cuja capital é Beira.

Foi uma alegria estar diante dos colegas moçambicanos. No dia anterior, fiquei pesquisando algumas palavras para me expressar melhor.

Deu tudo certo. Foram dois dias de muito trabalho e aprendizado. Os professores ficaram felizes. Desfrutavam das oficinas com muitas perguntas e desejando que o seminário durasse mais tempo.

Os educadores aproveitaram bastante as oficinas durante o seminário

No final, muitos vieram me agradecer pelo o esforço em falar o português moçambicano. Eles apreciaram meu empenho, mas também queriam me tranquilizar com o fato de que 90% das novelas que eles assistem em Moçambique são brasileiras e, por isso, entendem bem o português brasileiro. Os educadores ficaram felizes e tocados quando disse que um dos meus autores favoritos é o Mia Couto.

Também ficaram felizes e tocados com as doações que a Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil fez dos livros Destroços e Traumas [de autoria do professor alemão Bernd Ruf, a obra é referência para quem pretende trabalhar com os conceitos da pedagogia de emergência; foi editada no Brasil pela editora Antroposófica]. Os colegas fizeram questão de dizer que vão ler o livro com carinho e depois repassá-lo para outras escolas.

Cerca de 130 educadores de várias cidades da província de Sofala participaram da formação oferecida pelo time internacional de pedagogia de emergência

A vida em Moçambique não está fácil. Os preços dispararam e me pergunto muitas vezes como é que as pessoas conseguem viver aqui, com tudo tão caro. Ultimamente tenho feito essa pergunta com frequência nos lugares onde atuo com a pedagogia de emergência, como Roraima, Nepal, Iraque e agora aqui, Moçambique.

As crianças continuam pedindo biscoitos. Sempre dizem que estão com fome. Hoje, durante as atividades, uma refeição ficou pronta e muitas crianças saíram correndo. Algumas ficaram sentadas. Quando perguntei se elas não estavam com fome, disseram que sim, mas não queriam correr o risco de não participar mais das atividades. Tive que prometer que nós as esperaríamos. Deu tudo certo e o trabalho seguiu como planejamos. Foi lindo o resultado final! Todos se alegraram quando receberam seus desenhos no encerramento do círculo da manhã.

Havia tantas crianças no campo que foi preciso fazer quatro rodas dentro de uma roda maior

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Hoje fomos, pela primeira vez, trabalhar num outro abrigo, também bem afastado de Beira. Muitas famílias já tiveram que deixar esse local e voltar para suas casas. O clima não está bom. As pessoas dizem que não podem voltar para seus lares pois as águas ainda não baixaram. Muitas casas precisam de reparos, mas quando alguém cava perto delas, a água sobe novamente.

Várias pessoas que estão nos abrigos já nem recebem ajuda do governo. Mesmo assim, preferem continuar vivendo em tendas que fervem com o calor, num local sem muita água e com banheiros improvisados.

A quantidade de crianças nos surpreendeu quando chegamos a esse campo. Decidimos parar de contar, pois eram muitas. Tivemos que fazer quatro rodas dentro de uma roda maior. Claro que os pais também ficaram por perto.

Muitas crianças estão com machucados enormes. Feridas abertas. Outras tantas com conjuntivite. Problemas na pele, como neurodermites, sarna e pano branco, são frequentes. Outras estão cada vez mais sujas. Hoje até fizemos um cinto para um garotinho de 4 anos que usava a bermuda de um menino de 10. Claro que a peça caía o tempo todo e ele não conseguia fazer as atividades.

Apesar de tudo, as crianças aproveitam muito. Seus sorrisos são pérolas. Elas se movem com facilidade, cantam como se conhecessem as músicas há muito tempo, aplaudem e pedem mais. Quando finalizamos a roda, muitas pegaram em nossas mãos e queriam ter certeza da nossa volta no dia seguinte. Outras fizeram questão de nos acompanhar até o carro.

Hoje também segurei um bebê para que seu irmão mais velho pudesse participar da oficina de pintura. O bebê ficou bem. Tão bem que babou nos meus braços, fez xixi no meu colo e ainda queria comer o meu cabelo. O irmão mais velho se desculpou pelo xixi do caçula, mas dava para ver em seu rosto que estava super feliz por poder realizar as atividades com tranquilidade.

Reinaldo cuidou de um bebê enquanto o irmão do pequenino participava das atividades

Sei que Moçambique precisará de muito tempo para se recuperar dos estragos causados pelo ciclone Idai. As coisas realmente não estão nada fáceis por aqui. Em muitos locais as águas ainda não baixaram. Nem todas as escolas podem receber os alunos novamente. Inúmeros animais morreram ou ficaram doentes com as enchentes. Muitas casas continuam destelhadas e muitos moçambicanos estão desesperados com tudo isso.

Eu já tinha vindo a Moçambique e sempre quis voltar para cá. Sempre pensei em Moçambique como um país bem colorido. Aqui muitas mulheres usam as capulanas e elas são bastante coloridas. Eu gosto muito desses panos e de seus desenhos cheios de cor!

As crianças têm aproveitado as poucas horas que passamos com elas. Temos que viajar 160 km, na ida e na volta, para trabalhar durante apenas três horas com aqueles garotos e garotas. Se vale a pena? Sim, vale muito! Mesmo com tantas feridas abertas e tantas doenças, quando as crianças estão nas rodas e nas oficinas, o mundo fica melhor. Outro dia uma mãe veio com seus dois filhos para que eles pedissem minha benção. Claro que me pergunto: quem sou eu para abençoar alguém? Mas eu os abençoei e também pedi a benção àquela mãe. Ela sorriu e me disse que somos todos abençoados.

Reinaldo Nascimento, cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, coordena uma intervenção de pedagogia de emergência em Moçambique.

[Contribua com a campanha de financiamento coletivo em prol da intervenção de Moçambique! Veja todos os detalhes e faça sua doação aqui]

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A Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil trabalha para transformar a vida de crianças e jovens traumatizados por situações extremas.