Diário de Beira | O brincar

Pedagogia de Emergência no Brasil
TransformAÇÃO
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4 min readApr 16, 2019

Beira, 15 de abril de 2019

As crianças que vivem nos campos exibem orgulhosas os brinquedos que constróem com sucata

Em muitos locais as águas estão baixando, mas em certas áreas a impressão é que não baixarão nunca mais. Algumas pessoas até já voltaram para suas casas, mesmo com a água ainda batendo na altura da porta.

Os dias continuam quentes e úmidos. A maioria das crianças nos abrigos que atendemos segue sem acesso à escola. Muitas instituições de ensino permanecem destelhadas e inúmeros postes ainda estão caídos, prejudicando o fornecimento de energia.

É impressionante ver a altura até onde as águas chegaram. Em determinados pontos, ainda podemos encontrar palha seca pendurada nos fios elétricos!

O ciclone Idai é o tema na televisão. O país, certamente, precisará rever muitas coisas e reconstruir tantas outras. Em algumas ruas, todas as árvores foram arrancada pelas raízes. Impressionante! O calçadão da praia perto do nosso hotel foi todo danificado.

Nosso trabalho continua firme e forte e cada vez mais ritmado. É lindo quando chegamos e as crianças já vão se posicionando. O Mbandi, voluntário do Quênia, dá uma volta pelo abrigo cantando Hakuna Matata e as crianças vão saindo de suas barracas. O número de crianças está diminuindo. Muitas famílias tiveram que voltar para suas casas. De manhã trabalhamos com 200 e à tarde, com o mesmo número.

O tronco caído vira um trepa-trepa natural

Quando o Mbandi termina a sua volta, os outros educadores já estão preparados para receber as crianças, que passam por um túnel antes de formar a roda. Falamos o nosso verso, cantamos e fazemos um exercício de euritmia.

Os pequenos são então convidados para as atividades com a Cornelia e a Marieta. As crianças de 6 a 8 anos ficam com o Klaus e o Markus. As de 9 a 10, com a Diana e comigo. A turma de 11 a 13 fica sob os cuidados da Constanze e do Christian. Os maiores são acolhidos pelo Mbandi e o Ulrike.

A atividade rítmica do grupo que coordeno com a Diana de manhã é bem tranquila. Noventa e cinco por cento dos alunos falam português — e eles adoram as músicas brasileiras. Só preciso perguntar quais cantamos no dia anterior e todos começam a entoar Juli Baby, História do meu Pônei, Para Dentro e Para Fora e tantas outras. Palo Bonito E e Simamka sempre são cantadas quando chegamos no portão.

Pensei que todas as criançasdo grupo da tarde também falassem português: quando dizia bom dia, elas respondiam normalmente. Depois percebi que tinham dificuldade com as letras das canções. Elas falam sena, uma língua que tem algumas palavras iguais ao português. Apesar disso, sempre pedem para cantarmos as músicas em português.

Mas o que mais tenho visto e admirado aqui é a qualidade dos brinquedos que as crianças produzem. Transformam tudo em brinquedo e estão sempre orgulhosas disso. Os mais velhos também reconhecem a qualidade do que é construído pelos menores.

A potência da criatividade infantil

Aqui não há tempo para frescura. Para brincadeiras gourmet. É no barro e com barro mesmo.

Quando chegamos no primeiro dia, nos disseram que se limpássemos o espaço com luvas, as pessoas não nos ajudariam. Não pegamos as luvas. E realmente várias crianças e adultos vieram nos auxiliar. Muitos adultos disseram que, no outro dia, o espaço estaria completamente limpo. E no dia seguinte estava mesmo tudo limpo! Fomos recebidos com palavras de carinho, nos disseram que nosso trabalho é bem-vindo!

Hoje foi dia de trabalhos manuais. As crianças sempre ficam encantadas com coisas coloridas. Fizemos pulseiras, olho divino, tricô de dedo. Muitos pais foram aparecendo com o desejo de aprender também.

Ontem fizemos dobraduras. Havia muito tempo que eu não via crianças e jovens se encantarem com um barquinho de papel. Nossa! Era de arrepiar o jeito como eles arregalavam os olhos com a chegada do barquinho. O orgulho de levar para casa e de mostrar para os amigos… Até eu guardei o meu!!! Quando foi a última vez que fizemos um barquinho de papel? Ou nos sentamos num tronco de árvore para brincar de cavalinho? Empurrar pneus velhos, fazer carrinho de garrafas plásticas, sentar no chão e sujar a bunda?

Apesar das longas viagens e da escassez de tanta coisa, sinto que nosso trabalho tem feito muita diferença na vida dessas crianças.

Hoje atuamos com as pessoas que vão assumir o trabalho após nossa partida. Depois fomos convidados para uma ação no Zimbábue, que também foi bastante afetado pelo ciclone.

Conseguimos fazer uma oficina com mães e alguns pais também apareceram. Os adultos se divertiram à beça. Muitas crianças não conseguiam se concentrar nas atividades: ficavam olhando seus pais brincando, cantando e “gritando” de alegria. Quando foi a última vez que essas crianças viram seus pais brincando?

Reinaldo Nascimento, cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência o Brasil, coordena uma intervenção de pedagogia de emergência em Beria, Moçambique.

[Colabore com a campanha de financiamento coletivo em prol da intervenção em Moçambique. Veja aqui como contribuir.]

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A Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil trabalha para transformar a vida de crianças e jovens traumatizados por situações extremas.