Toda forma de amor

Allen Ribeiro Porto
A Bíblia, o Jornal e a Caneta
12 min readJun 10, 2017

Já virou clichê. A expressão “toda forma de amor” se transformou no lema sentimental da nossa geração, utilizado para defender, especialmente, a causa LGBTQ. A expressão, como era de se esperar, passou a ser devidamente incorporada e explorada pelo mercado, especialmente em épocas como a de agora, em que se aproxima o dia dos namorados.

Quem começou a usar? A expressão vem da música de Lulu Santos, de 1983, e diz “consideramos justa toda forma de amor”, mas eu não saberia dizer quem foi o primeiro a explorá-la para os fins comerciais. O fato é que, em nossos dias, são muitas as campanhas explorando a mesma expressão. Empresas como o Boticário, Shopping Total, Shopping CenterMinas, Imaginarium, Rosa Rio Joalherias , Razões para acreditar, Boots e até mesmo instituições como o Instituto de Comunicação e artes UNA e a Universidade Federal de Ouro Preto, além de palestrantes como a Maria Berenice Dias no TEDx .

Um pouco de criatividade para os publicitários não faria mal, mas esse não é o problema central. Existe algo mais no lema, que deveria ser percebido.

A figura oculta, que não é um cachorro

O que significa “toda forma de amor”? O que se pretende comunicar, e até onde é permitido ir na aplicação prática do lema?

Um primeiro aspecto a se considerar, manifesta o equívoco no conceito de amor. O amor descrito nessas campanhas é uma expressão sentimental, que tem mais a ver com relações de consumo do que com o trato adequado entre duas pessoas. Não se deve confundir “relações de consumo” com o fato de serem exploradas por marcas e produtos. O ponto aqui é do contato entre duas pessoas, baseado nas emoções do momento, e em movimentos narcísicos de busca pelo prazer momentâneo e satisfação pessoal.

Como é possível demonstrar isso? Não seriam as declarações acima meros juízos preconceituosos e sem fundamento? Afirmo que não, e demonstro: o “amor” sentimental é o mesmo utilizado para justificar que homens na crise da meia idade abandonem suas esposas, trocando-as por mulheres mais novas. O sentimentalismo não dá conta do amor, porque este se ancora em dimensões mais profundas da vida humana do que os meros apetites. O amor envolve sentimentos, mas não está restrito a eles. Voltaremos a isso depois.

Para além do erro na compreensão de amor, surge a pergunta acerca da limitação das formas de amor. Se é justa “toda forma de amor”, não existem limites? Se existirem, quem os definirá?

A tese tem por proposta inicial a equivalência das relações homossexuais às heterossexuais. Um homem e uma mulher manifestam uma forma justa de amor, mas também o farão um homem e outro homem, ou uma mulher e outra mulher.

É inevitável questionar: se a questão de gênero é relativa, e se toda forma de amor é válida, podemos repensar também a questão de número? Talvez alguns comecem a estranhar, ou mesmo a considerar uma extensão injusta do pensamento, mas a esses deveríamos dizer que já existem campos de estudo consolidados a respeito do tema. Em psicologia, os estudos do que ficou conhecido como “poliamor” têm gerado teses e artigos discutindo a questão. Um homem e duas mulheres são uma forma de amor válida? Uma mulher e dois homens? Três mulheres e dois homens? Se toda forma de amor é válida, bigamia e poligamia deveriam ser levados em conta.

A insistência pode ser incômoda, mas alguém que queira levar a declaração a sério não pode parar por aí. Se toda forma de amor é válida, poderíamos repensar a questão da espécie?

O amor entre um homem e um animal é uma forma válida? Aqui, novamente, alguns — provavelmente muitos — diriam que se está forçando a barra. Será? O jornal britânico Daily Mail trouxe a notícia de Joseph Guiso, um australiano que decidiu se casar com o seu cão labrador, em uma cerimônia formal, com direito a votos matrimoniais. Essa forma de amor é válida? Alguém diria que o relacionamento com animais é meramente sexual, mas o próprio Guiso afirma o seu amor pelo cachorro, e declara não ser nada sexual. Se o argumento final para a legitimidade de um relacionamento for o “amor” sentimental, estaríamos corretos em condenar tal relação?

Provavelmente surgiria um novo contra-argumento: a ideia de que o amor entre um homem e um animal não seria recíproco. Mas como é possível afirmar isso? Quem pode provar que um cão, que chora quando seu dono viaja ou sai de casa, não o ama? Tudo isso, sem considerar tanto as discussões levantadas pelo filósofo Peter Singer, que, mesmo não falando em amor, afirma que relações entre homens e animais podem ser prazerosas para ambos, e são um tabu a ser questionado.

Para os que acham tudo isso muito bizarro, retornemos à espécie humana. Se toda forma de amor é válida, que tal repensarmos as questões de idade? Sem recorrer aos extremos: o relacionamento entre um homem de 33 e uma moça de 13 anos é válido? Se ambos jurarem amor um ao outro, a pedofilia passa a ser aceita? Aqui, novamente, a lógica é direta: se o critério fundamental para definir a validade de um relacionamento for o “amor” sentimental, então teremos de aceitar a pedofilia.

Surgem os argumentos contrários, dentre os quais, os principais seriam a questão legal e psicopatológica: o relacionamento não é válido porque é proibido por lei, e porque a pedofilia é considerada uma doença. Mas aqui vale lembrar que as leis são criadas e derrubadas conforme a cosmovisão dominante, e, por incrível que pareça, também as classificações psicopatológicas. Para se ter um exemplo claro do ponto, a sodomia era crime em todos os estados dos EUA até 1962. Eventualmente, muitos estados mudaram a legislação, descriminalizando as relações homossexuais. Os proponentes de “toda forma de amor” ousariam usar o argumento da lei para dizer que, antes de 1962, a forma de amor homossexual não era válida?

E que tal pensarmos sobre a questão psicopatológica? Pedofilia não deveria ser aceita como uma forma legítima de amor porque se trata de doença, correto? Então lembremos que até 1975, o homossexualismo era considerado doença pela Associação Americana de Psicologia. O fato de ser considerado uma doença àquele período tornaria o homossexualismo uma forma de amor ilegítima?

Leis sociológicas e classificações patológicas não são suficientes para determinar a validade ou não de uma forma de amor. Aliás, o que importa é o amor, não?

Esse é o argumento do filósofo brasileiro Clóvis de Barros. Segundo o filósofo, o amor não é moral — é sentimental, e, portanto, incontrolável. Dessa maneira, o pedófilo não possui controle sobre o seu amor. A conclusão lógica é que, uma vez que não há controle, o pedófilo não deveria ser reprimido por sua forma de amor.

Quem concorda com a tese do “amor” sentimental se torna refém das palavras do filósofo. Se toda forma de amor é válida, como negar essa experiência a alguém que simplesmente ama e não controla seus afetos, exatamente como argumenta um homossexual?

A descrição acima deveria demonstrar que a mera afetividade, quando elevada ao critério último de legitimação dos relacionamentos, cria graves problemas até mesmo para aqueles que declaram ser justa “toda forma de amor”. Dificilmente tais pessoas estão cientes das implicações de sua própria declaração, e poderão argumentar que não pensavam nisso quando afirmavam a expressão, mas essa resposta apenas ressalta a importância de pensarmos adequadamente acerca do que falamos — as palavras têm significado.

Mas qual é a resposta a essas afirmações? Quem define as formas válidas de amor?

Existe uma norma? A Bíblia e o amor

Muitos dos que afirmam a validade de “toda forma de amor” são os que defendem o “Estado laico” — outra panacéia contemporânea para os males do mundo. Provavelmente fazem tal reivindicação sem uma compreensão adequada do ponto. Muitos não identificam que a origem da ideia de Estado laico está nos religiosos: a separação entre igreja e Estado, que está na raiz do conceito, é produto da reflexão de cristãos [Cf. Cf. André Bieler, A força oculta dos protestantes, p.53–6]. Ainda assim, usa-se a expressão para silenciar não apenas manifestações religiosas em repartições do governo, mas para silenciar o discurso religioso na esfera pública em qualquer instância. “Estado laico” virou um grito de guerra secularista para silenciar qualquer cristão que deseja falar publicamente acerca de sua fé e das implicações disso.

Portanto, pedimos licença aos secularistas, mas não podemos guardar a fé numa gaveta de casa. Ela produz impacto sobre quem somos e como vemos o mundo. E é exatamente na consideração da Bíblia que está a resposta para as questões que os proponentes de “toda forma de amor” não conseguem responder.

Inicialmente, a Escritura nos apresenta uma proposta de amor diferente do sentimentalismo. Enquanto a mentalidade sentimental identifica amor com uma série de sensações e afetos e por isso o trata como algo amoral e incontrolável, a Bíblia ancora o amor em uma dimensão mais profunda da vida humana, trabalhando em termos de disposição e aliança. As imagens bíblicas de amor não dizem respeito a alguém que teve um insight momentâneo e se viu arrastado pelo sentimento; pelo contrário, embora não negue a presença de emoções, na Escritura o amor é cultivado. O ambiente do amor é a aliança — a promessa de caminhar juntos e buscar o bem do outro [Cf. Tim Keller, O significado do casamento, capítulo 3]. A aliança vai no sentido contrário das relações de consumo do amor sentimental.

Na relação de consumo o foco está em utilidade e performance. Eu preciso ter a melhor performance, e também a minha parceira. Se cairmos em nosso desempenho, corremos o risco de sermos substituídos na relação. Isso fala sobre a utilidade: nessa expressão de “amor”, o outro é importante enquanto é útil. Tão logo a utilidade diminua, seja por queda na performance, seja pelo surgimento de conflitos, seja pelo surgimento de outra pessoa mais útil para os meus propósitos, eu considerarei abandonar a relação. E farei isso em nome do “amor”. A experiência é de consumo porque é moldada nos mesmos termos em que lidamos com produtos comerciais — trocamos o celular assim que ele fica desatualizado, jogamos fora a calça jeans assim que ela rasga, e mudamos o tênis assim que vemos outro melhor.

No amor da aliança, a relação é protegida pela promessa. Mais realista, ele sabe que haverá problemas, que o desempenho cairá, que momentos de desânimo chegarão, e que a outra pessoa (tanto quanto eu) falhará. Mas esse amor não é guiado pelas impressões do dia. Os antigos votos de casamento, que prometiam fidelidade e companheirismo “na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza” eram uma demonstração dessa mentalidade. Infelizmente, foram substituídos por “votos” escritos pelos próprios noivos, que agora simplesmente descrevem como o coração deles bateu forte ao se encontrarem, e como o outro é “uma pessoa maravilhosa”, exatamente nos termos de performance.

O exemplo máximo do amor de aliança é o próprio Deus. Ele se comprometeu com o seu povo, e permaneceu fiel mesmo com as incontáveis manifestações de infidelidade e rebeldia de Israel. Mais do que isso: em Efésios 5.25–27 o casamento é comparado ao relacionamento entre Jesus e a igreja. Jesus não apenas lida com a péssima performance de sua noiva, mas Ele se compromete a purificá-la, até que ela fique “sem mácula, nem ruga” — para isso, deu a própria vida na cruz.

Esse é o verdadeiro amor.

A Bíblia não apenas demonstra o que é o amor, mas também delimita as formas aceitáveis de amar. Levítico 18 é um dos textos mais claros sobre o ponto. Ali a Bíblia não permite o relacionamento incestuoso (v.5–18); adultério (v.20); homossexualidade (v.22) e relações com animais (v.23). Da mesma maneira, o Novo Testamento reafirma a ética relacional estabelecida por Deus. Jesus fala de “relações sexuais ilícitas” (do grego porneia), que diziam respeito, principalmente, ao adultério e fornicação, mas o termo também indicava incesto, sodomia e outras formas de desvio sexual [cf. Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich (ed.), The Theological Dictionary of The New Testament, vocábulo porneia, p.919–21]. Os apóstolos seguiram os preceitos do Antigo Testamento e de Jesus, demonstrando o homossexualismo (Romanos 1.26,27), adultério (1Coríntios 6.9) e incesto (1 Coríntios 5.1) como “formas de amor” inválidas.

Provavelmente a pergunta a ser feita diante dessa percepção é: por que a Bíblia condenou tais relações? Por que a Bíblia não considera justa toda forma de amor? Existe uma resposta para isso.

O amor existe para manifestar algo do próprio Deus. Não é à toa que a Bíblia cria uma identificação entre Deus e o amor — João afirma explicitamente “Deus é amor” (1 João 4.8). Dessa perspectiva, o amor não é fundamentalmente sobre o homem, a criatura, mas sobre Deus, o Criador. Isso não significa que o amor não tenha validade como elemento nas relações humanas, mas significa que, como o amor é parte da auto-revelação de Deus, o seu sentido é definido por Ele.

Isso pode ser percebido na dinâmica de amor inerente ao ser de Deus. O cristianismo bíblico percebe Deus como uma Trindade: três pessoas em comunicação e amor. A Trindade revela o equilíbrio último entre unidade e diversidade, universais e particulares. Deus decidiu revelar a Sua imagem na criação, e o fez de modo interessante. Conta-nos o livro de Gênesis:

26 Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. 27 Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. 28 E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. (Gênesis 1.26–28)

O versículo 27 afirma que Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança, mas expressou essa imagem na criação de homem e mulher. Por quê? Porque Deus é, em sua essência, comunitário: Pai, Filho e Espírito Santo. A maneira escolhida por Deus para revelar algo da sua dinâmica interna, foi criando homem e mulher, e estabelecendo um relacionamento entre eles.

Em Gênesis 2 nós temos um relato mais detalhado da criação do homem. Deus cria inicialmente Adão, mas vê que ele está só. Embora tenha considerado toda a sua criação como boa, o Criador declara que “não é bom que o homem esteja só” (Gn.2.18); assim cria a mulher. Deus apresenta a mulher ao homem, e agora uma aliança é estabelecida: eis o primeiro casamento.

Desse relato, já é possível perceber uma estrutura: o amor, conforme o desejo de Deus, manifesta-se entre um homem e uma mulher, no ambiente da aliança. É verdade que houve distorções no processo, com a poligamia fazendo parte da caminhada do povo de Deus, mas ao chegarmos no Novo Testamento, encontramos a imagem de Jesus e a sua noiva (Efésios 5), e também encontramos como requisito para a liderança na igreja, que o homem seja marido de uma só mulher (1 Timóteo 3).

Qual é a norma do amor? Um homem e uma mulher em aliança. Por que Deus não considera justa toda forma de amor? Porque as nossas relações, em última análise, espelham algo do próprio ser de Deus. Expressões como o adultério, a pedofilia, o incesto e a homoafetividade são falsas representações da imagem de Deus, e, assim, perversões do amor.

A maior forma de amor

Não se deveria deduzir, da argumentação acima, que os praticantes de formas ilegítimas de amor deveriam ser perseguidos ou maltratados.

Somos chamados a alertar todos os homens que existe uma norma para vida humana. Essa mensagem, muitas vezes, é incômoda, mas precisa ser dita. A maneira de dizer isso pode ser enfática, e até mesmo dura, mas não como resultado de ódio. O alerta é para que os homens que defendem as formas ilegítimas de amor venham a se arrepender de seus caminhos, e a conhecer o amor verdadeiro.

Nossa busca por amor tem a ver com o desejo por satisfação, descanso e paz; em uma palavra: redenção [ Cf. Tim Keller, Deuses falsos, cap.2]. Ao apresentarmos as reivindicações de Deus, também anunciamos a paz a todos os que confiarem em Jesus.

Quem errou, seja cometendo adultério, incesto, pedofilia ou se envolvendo em relações homossexuais, deveria ser confrontado em seu pecado, mas encorajado a conhecer o amor de Deus. Há redenção! O apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 6, fala algo importante para a ocasião:

9 Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, 10 nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus. 11 Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus. (1 Coríntios 6.9–11)

Paulo providencia uma lista de pecados que deveriam ser confrontados, dentre os quais, vários envolvendo perversões sexuais, como adultério e sodomia. Mas ele não encerra o seu ponto na lista. No versículo 11 afirma: “tais fostes alguns de vós”. Na igreja dos coríntios, alguns tinham cometido adultério e vivido como homossexuais. No entanto, afirma o apóstolo Paulo, eles foram lavados, santificados e justificados em nome do Senhor Jesus — encontraram a redenção. A Bíblia anuncia que as pessoas que já experimentaram formas ilegítimas de amor, podem encontrar amor real.

A maior forma de amor foi apresentada por Jesus na cruz. Ali ele deu a própria vida, sofrendo a ira do Pai, para justificar pecadores indignos. Esse amor não foi para vivermos de qualquer maneira, mas para sermos transformados à sua imagem, em pessoas que amam de verdade.

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Allen Ribeiro Porto
A Bíblia, o Jornal e a Caneta

Allen Porto é pastor presbiteriano na cidade de São José do Rio Preto, SP. É casado com Ivonete, e pai de Matias e de Lúcia.