0557

caroline machado
a coluna
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4 min readMay 29, 2024

Quando era criança/adolescente, participava de corridas de velocidade. Fazia também outros esportes, mas gostava muito da corrida — a ponto de uma queda, que rendeu uma cicatriz no cotovelo, não minar a experiência. Era uma sensação de liberdade, de leveza: eu não dependia de nada além das pernas para chegar ou sair de lugares.

Numa dessas corridas, estava um dia muito frio. Havia chegado cedo em São José com o ônibus cheio de outros colegas da mesma idade. Eu tinha por volta de 13 anos, talvez 12. Fazia realmente um frio horroroso, embora o sol brilhasse. Chegamos cedo a ponto de ver a cerração, ainda não dissipada pelo vento.

No dia em questão, eu faria duas corridas: uma de 100m; outra de 800m. Como disse, participava de corridas de velocidade, e a segunda era mais longa do que eu estava acostumada, o que não parecia ser problema. Corrida é corrida: mesmas pernas, mesmos braços, mesma mente, e eu era confiante, com os membros inferiores compridos.

Na noite anterior, minha mãe me deu um par de tênis para usar: era da Kolosh, preto e roxo — lembro como se o estivesse segurando nas mãos. Confortável, apesar de diferente. Eu estava acostumada, afinal, a correr com tênis de sola reta, e aquele tinha uma elevação no calcanhar. Não pensei que poderia dar problema.

No estouro da largada dos 100m, estiquei as pernas o máximo possível, impulsionei o corpo para frente, tudo aquilo. Foram três lindos passos antes de a elevação do calcanhar cobrar seu preço: o impulso para frente foi intensificado e eu literalmente quase dei com a boca no chão. Com o rosto a 20cm do asfalto, joguei as braços para trás e, depois de um par de passos descompassados, consegui reerguer o tronco. Aí, corri. Corri, corri, corri. Tentei, à todo custo, compensar os milissegundos perdidos. Consegui o terceiro lugar e levei um troféuzinho de plástico para casa.

O soco no ego foi sentido. Estufei o peito magricelo e botei na cabeça que ia arrebentar na outra prova. A minha professora favorita alertou que os 800m eram diferentes dos 100m, que eu não poderia — não conseguiria — completar bem se saísse no máximo gás. Eu, supostamente, sabia o que seria melhor.

Dada a largada, saí na frente. Dedos da mão apontados para frente, atravessando o vento, pensei que conseguiria manter o ritmo. O coração apertou, as bexigas pulmonares queimaram. Parei. Ainda faltava tanto, tanto. Os outros corredores foram passando. Um outro estouro, tentei, mas não durou quase nada. Cheguei em último (ou quase). A professora era uma amiga e me disse que tinha avisado. Dei os ombros; eu não era muito maleável.

Aquela, se não falha a memória, foi minha última competição. Conforme fui adentrando cada vez mais na adolescência, mais me distanciei dos esportes. Logo, qualquer tentativa de corrida era frustrada pelo cansaço e as dores. Perdi o jeito, um pouco do gosto. Em alguns ímpetos particulares, tentava retomar: sentia novamente a liberdade do movimento. Durava até o clima mudar, ou um pé virar, uma canela doer demais. Entendi, em algum momento, que os dias de corrida tinham ficado para trás.

No último domingo, preguei na camiseta o número 0557. Era a minha identificação na corrida de 5Km que participei. Na contagem regressiva, rodeada de outros corredores, amadores e profissionais, meu coração pulava no peito, minhas mãos tremiam. A noite anterior foi de um sono ralo, atravessado pela inquietação. O cronômetro acusou que o primeiro segundo da corrida começara e corri.

No ano passado, pretendi participar de uma corrida em novembro — tinha retomado o ritmo das corridas, embora não conseguisse completar 1Km sem parar e sentir que ia morrer. A ansiedade foi se amontoando de uma forma que culminou na maior idiotice do mundo: depois de um treino de musculação e de corrida, virei o pé direito no último degrau da escada. Talvez fosse um sinal.

A recuperação da lesão foi melhor do que esperava, porém, não retornei às corridas. Havia, afinal, uma lesão mais profunda do que todas as físicas, e ela precisava sarar, cicatrizar, ser superada. O abalo à minha confiança mostrou-se ainda mais vivo quando uma amiga comentou sobre a corrida do dia 26 de maio, mas o apoio ajudou à prosseguir com a inscrição.

Na semana anterior, fiz dois treinos horríveis de chorar. Pensei que não ia conseguir, temi me machucar novamente — uma resposta ao pânico, para me livrar, uma vez mais, de encarar o medo. Quando era adolescente, competia com os outros; agora, competia comigo mesma.

No dia da prova, enquanto estava correndo, prostrou-se sobre mim a noção de que aquela corrida não era diferente do que eu já vinha fazendo nos últimos meses de preparação; não havia monstro a matar; não havia tempo a bater. Cruzei a linha de chegada cansada, com dor nas panturrilhas, e, apesar disso, tive a impressão de nunca ter corrido tão bem quanto naquele dia.

Com o frio de doer que fazia, à ponto de queimar as narinas, a lesão do ego não tanto cicatrizou quanto foi cauterizada. Na queimação do corpo pelo frio, pelo calor, pelo esforço e a exigência dos músculos e do fôlego, me recuperei.

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caroline machado
a coluna

escrevo algumas coisas. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna. no Instagram @carolinemachada, expresso minhas histórias visualmente.