Aos cuidados do juízo

caroline machado
a coluna
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3 min readMay 9, 2022

Quando penso no futuro, imagino um compilado com as melhores colunas reunidas em um livro e, em definitivo, não me parece que esta entraria no corte da publicação, pois carece de tópico específico e de uma certa paixão. Nos registros da minha memória, me parece que nada digno de nota ocorreu nos últimos dias, daí a dificuldade em executar uma vez mais algo que faço há um ano, quase religiosamente.

Dito isso, me ocorreu enquanto escrevia o parágrafo acima que, sem tópico específico e sem certa paixão, as histórias da vida cotidiana se desenrolam sem muito esforço no mundo real, como um fio solto que aos poucos desfaz um tapete.

Quando, todos os dias, saio para o trabalho, observo quase sempre as mesmas pessoas, quase sempre no mesmo caminho, quase sempre no mesmo horário. A cada dia se desfaz uma amarração na tapeçaria individual, porém, sempre sobra o fio comprido, meio amassado — as memórias que não doem tanto, tão distantes e tão próximas.

Salvo engano, há sete anos eu precisei arrancar os quatro sisos. A experiência foi, no mínimo, traumatizante. Os primeiros dois demoraram uma eternidade, tanto é que a anestesia passou no meio do caminho e tive que levar outra na gengiva rosada. Um mês mais tarde, quando retornei para retirar os outros dois dentes que supostamente materializavam o meu juízo, a coisa foi ainda pior.

Com medo, passei mal quando recebi a anestesia, antes de começar o procedimento, que demorou mais uma eternidade; a anestesia passou de novo e eu não podia tomar mais; minha cabeça parecia explodir a cada nova cutucada. Depois de mais de 2h, com o lado de fora da boca sangrando, inclusive, a dentista não conseguiu tirar um dos dentes. Fechou tudo com um pedaço lá dentro e a promessa de que conseguiríamos tirar na próxima vez que eu retornasse.

Fiquei aterrorizada com a ideia de voltar lá e passar por tudo de novo, porém a ideia de manter um pedaço substancial de dente dentro da minha gengiva era ainda pior. Recém cicatrizada, então, retornei. Tudo de novo. A anestesia passou antes do término do procedimento, minha boca estava completamente machucada, a dor era horrível e a dentista não conseguia tirar o pedaço de dente. Ela mexia, fuçava, e nada. Eu comecei a chorar quando a minha mãe apareceu e disse que chegava, tinha sido muito sofrimento, era pra fechar e ficaria assim mesmo. A dentista pediu um segundinho e, quando eu ia soluçar, anunciou que conseguira encontrar o que prendia o dente. Téc e acabou. Recusei a anestesia para fechar de novo a gengiva, não sei por qual motivo, e senti os pontos quase regozijando pelo término da tortura.

Lembro de pensar, enquanto ela estava com os aparelhos dentro da minha boca, que aquilo nunca chegaria ao fim. Agora, lá se foram 7 anos (mais ou menos). Foram apenas 2h, nada más. A situação por certo contribuiu para o meu temor de dentista, mas, hoje, não passa de uma memória vívida sem gosto de sangue, cheiro de consultório odontológico e dores agudas, existindo na minha mente como se experienciada por outra que não eu. Apenas mais um nó desfeito no meu tapete, um fio amassado.

Tudo isso para dizer, objetivamente, que as coisas passam. As ruins e, infelizmente, também as boas — mas estas a gente pode se esforçar para preservar de alguma forma. Em todo caso, pelo menos os meus dentes da frente não tentam subir um em cima do outro.

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caroline machado
a coluna

escritora e estudante. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna.