"Eu vejo gente morta."

caroline machado
a coluna
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2 min readJul 16, 2024

Em 1975, quando a minha mãe ainda não passava de uma recém-nascida, Cher e Michael Jackson (então nos Jackson Five) estavam mandando ver no The Cher Show. Eles utilizavam roupas brilhosas e pés ligeiros para entreter o público.

Eu não conhecia esta performance até semana passada, quando meu companheiro a colocou na televisão da sala e, entre uma coisa e outra, espiei. Cheguei, na verdade, a largar uma coisa e outra e me prostar em frente à tela para observar. Para além das técnicas vocais e corporais empreendidas na performance, foquei nas expressões dos dois, me perguntando o que estariam pensando naquele momento; o que almejavam.

Este é um pensamento típico do futuro. Ao observar o passado, sabendo de tudo (ou mesmo de parte) do que vai acontecer, é inevitável imaginar se tudo (ou quase) poderia ser diferente — ou, ao menos ponderar: aquela pessoa tinha a sensação do que o futuro aguardava?

Questionamentos da mesma ordem me abatiam quando eu via, há muitos anos, o Facebook de alguém que faleceu. O rapaz de O Sexto Sentido passou a se tornar mais relacionável. Todas as fotos sorridentes, vídeos animados, poderiam esconder alguma noção da verdade vindoura? E mais: depois que todos se fossem, aqueles sorrisos digitais permaneceriam esquecidos em links inacessíveis?

Cena de O Sexto Sentido, em que o personagem Cole Sear afirma: ˜Eu vejo gente morta.˜

Cruzei recentemente com a Teoria da Internet Morta, que, segundo Yoshija Walter, "postula que a Internet é predominantemente povoada por conteúdo gerado por IA, reduzindo a atividade humana a instâncias isoladas."* Isto se dá com fins lucrativos, é claro, e a tendência não é de reversão.

Imagem de Caro Ma

Neste agora, em que os primeiros passos e últimos suspiros são postados nas redes sociais, talvez as recordações sobrevivam somente um par de gerações — ou, como se repara nos ciclos de problemas-soluções da humanidade, sejam um privilégio de alguns poucos.

Se a preocupação analógica era com um incêndio ou enxurrada que pudesse levar todas as suas fotos, a preocupação digital não é muito diversa, materializando-se no possível soterramento da produção humana pelo "conteúdo" produzido por bots. As chances do desastre no analógico, no entanto, pareciam menores do que as enfrentadas hoje.

*Tradução da colunista.
Fonte: Walter, Yoshija. Artificial influencers and the dead internet theory. AI & Soc (2024). Disponível em: https://doi.org/10.1007/s00146-023-01857-0.

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caroline machado
a coluna

escritora e estudante. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna.