Má sorte

caroline machado
a coluna
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4 min readDec 6, 2021

O maior inimigo dos motoqueiros, alguns podem considerar, é São Pedro.

Ao pegar o capacete e encarar o céu nublado dia desses, tomei a decisão consciente de não vestir a minha capa de chuva — uma lona preta e quente, que de vez em quando vaza e me faz parecer uma versão bem menos glamurosa da Billie Eilish. Fiquei pensando que, como os pingos ainda não tinham começado a cair, poderia vencer a tempestade. Depois, é claro, teria a historia para contar (e me vangloriar) sobre como venci a mutante interpretada pela Halle Berry nos cinemas.

Assim que passei com a Biz 110 pelo portão, senti a primeira gota, fininha como um pelo de gato, cair sobre o dorso da minha mão dominante. Olhei para o lado direito: o céu escuro indicava o pior; olhei para o lado esquerdo: o azul estava ainda mais azul em razão do brilho solar. Como meu rumo era à esquerda, continuei na minha jornada contra a chuva.

Fui o mais rápido que conseguia — contra todas as indicações — , imaginando a quantos quilômetros por hora se moviam as nuvens sobre a minha cabeça e se era, de fato, possível que eu as deixasse para trás. Porém, quanto mais avançava, mais sentia os pingos d’água gelada atravessando a roupa que eu vestia e tocando a minha pele.

Estava na BR-101 e parar no acostamento não me pareceu uma opção adequada, então decidi seguir até entrar numa rua que me levaria para a frente de um museu. Lá, pararia, vestiria a capa e seguiria com, no máximo, um par de tênis molhados.

Pus em prática o plano. Ao chegar na mencionada rua, um carro gigantesco e potente seguia na minha frente num passo de lesma. Tentei ultrapassar, mas sem sucesso. A chuva engrossou. “Eu não acredito, eu não acredito”, repetia, dentro do capacete. Estava presa atrás da besta de quatro rodas quando o céu desaguou. Dei um berro moderado, para expurgar a raiva, pois sabia que a pior prejudicada seria eu ao ficar quase surda pelo eco dentro do capacete.

Quando finalmente parei na frente do museu, estava bastante molhada, mas coloquei a capa mesmo assim — uma sensação bastante desagradável, se me permitem reclamar mais um pouco. Depois, segui meu rumo.

No caminho, ruminando amarguradamente sobre a minha má sorte, vi um casal em outra moto. Ele, de chinelo de dedos e bermuda; ela, de shorts jeans e a parte de cima do biquíni. Do céu, caia o maior dos temporais e, ainda assim, seguindo o fluxo do trânsito, observei como os dois conversavam animadamente, apontando para os comércios vez ou outra. Percebi, então, que talvez estivesse menos acompanhada pela má sorte do que acreditava. Em todo caso, pelo menos estava coberta.

Logo menos, as nuvens carregadas se abriram, dando espaço para o sol. Fiquei feliz, imaginando que certamente chegaria ao meu destino completamente seca. Isto é, até começar a ferver dentro da lona preta, como um pimentão que murcha sobre o calor da brasa.

Tentei focar no menor dos males. Calor por calor, sou encalorada sempre, já sei lidar com isso. Agora, chegar molhada nos lugares é outra história. Tudo daria certo, afinal.

Foi só pensar isso que o universo imediatamente me respondeu: “será mesmo?”. Quando virei a esquina do local em que pretendia chegar, um toró chorou todas as lágrimas do céu. Meio segundo mais tarde, a capa de chuva e os meus tênis estavam molhados (mas, pelo menos, as meias estavam secas).

Estacionei logo que encontrei uma vaga e busquei abrigo para poder tirar a capa longe da chuva, a fim de minimizar os danos às minhas roupas. Quando me prostrei sob o toldo, nem sequer tive tempo de tirar o capacete molhado. Ouvi um tec… tec… tec, tec… tec, tec, tec… tec, tec, tec, tec, tec, TEC, TEC, TEC, TEC. Granizo.

Logo, a rua se encheu de curiosos e pessoas apressadas para guardar os carros, motos e bikes. Fiquei ali parada, observando a movimentação, levemente preocupada com eventuais estragos à minha motoca — porém nada aconteceu. No fim das contas, estava acompanhada da boa sorte mesmo.

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caroline machado
a coluna

escrevo algumas coisas. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna. no Instagram @carolinemachada, expresso minhas histórias visualmente.