O último aniversário

caroline machado
a coluna
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4 min readJun 20, 2022

Sexta-feira. Dia de aniversário. Dia de semana. Abraços ao acordar; congratulações. Presentes na noite anterior, com direito a sorrisos largos. Ao trabalho: calça jeans sufocando o umbigo, cadeira com o encosto pela boa e as digitais um pouco mais gastas pelo atrito com o teclado. De volta para casa. Almoço. Ao trabalho novamente, e o encosto ameaçando ir para o beleléu. Toca o sino figurativo da fábrica. A 80Km/h, o caminho de casa é cortado pela metade. Porta adentro, banho, troca de roupas, o umbigo respira. Presente adiantado, para usar nas orelhas e no pescoço. Beijos e abraços. A certeza de que é bom estar na companhia de quem se ama. Tudo pronto? Tudo pronto. Começa a comemoração.

No último dia 10, fiz 24 anos. Mas, como eu costumo dizer aos autointitulados velhos que a vida realmente só começa quando passamos a nos tornar a pessoa que almejamos ser, devo ter feito uns 7 anos de vida, 8 se for generosa. Se você desconsiderar a minha teoria, ficam os 24 anos.

Uma delícia de restaurante para unir a comemoração do nascimento de uma vida e de um amor. Os namorados somente comemorariam dois dias mais tarde, porém adiantamos. Pizza para começar. Alguém quebra algo dentro do local, porém, natural, acontece. Soda de maçã-verde da casa, um luxo doce de R$ 14,00. O queijo da pizza é forte, dois pedaços são suficientes. Vamos pedir os pratos logo, para não perder a fome.

Vem o garçom após mais um som de vidro estilhaçando. Massa, pasta, macarrão. O sotaque italiano está enferrujado. Buscas no Google desvendam o segredo do que seria o tal pomodoro. Satirizamos o comportamento dos ricos nos filmes. O néctar verde da soda, depositado no fundo do copo, vai embora pelo canudinho roxo, deixando apenas o líquido transparente e levemente amargo. Na mesa de trás, em uma aparente chamada de vídeo, um idiota permanece gritando. Todos se viram, olham discretamente. O idiota não vê, com os olhos vidrados na tela do celular. A fineza impede o esporro. Paz? Somente quando a chamada termina. A sátira nem precisaria ter sido feita.

A chef aparece pela primeira vez. Um evento. Comentamos baixinho que ela mal e mal aparece. Será que está aqui todos os dias? E nada do prato, mas tudo bem. Conversa boa, o gelo da soda derretendo. A demora causou estranheza a partir de certo momento. Passou a chefe uma vez mais, a passos rápidos. Parecia nervosa, apreensiva. Na nossa frente, um desavisado bate no braço do garçom e uma garrafa de vidro quase vai ao chão. Ufa. E logo, mais longe, alguém quebra uma taça.

Sem muito tempo para surpresa. A chef aparece na mesa com um prato. Diz algo ininteligível e finaliza com “…aglio nero?”, algo assim. Alho negro? É o meu. Desejou uma boa janta e, ao meu noivo, ofereceu queijo para colocar sobre o prato dele. Aceitou. Com a concordância, a chef partiu, com as costas, marcadas de suor. A comida? Digna de comemoração de aniversário. Um deleite para quem, como eu, ama macarrão. Usei as bordas da pizza para sugar até a última gota de molho. Acabou a soda.

No banheiro, música italiana. A torneira só pode ser aberta de uma forma nada intuitiva, e o cartaz dá a dica: “para abrir, empurre para cima”. Água, água, água. A pressão em demasia respinga na roupa, mas é preta. Na penumbra, ninguém perceberia. Na volta para mesa, dúzias de palavrinhas com uma senhora de Curitiba que estava com dor nas costas. Disse que era a idade, indicando a necessidade de estar embaixo das cobertas. Quis reclamar da coluna e optei por não fazê-lo. Logo nos despedimos. Bom jantar!, e rumei à mesa.

Petit gateau e o sorvete da casa. Um mimo do restaurante pelo aniversário. Passou a chefe uma vez mais, acelerada, e, ao pará-la, agradecemos pela comida. Ela se desculpou pela demora; asseguramos que não havia qualquer problema, a delícia da refeição compensava qualquer espera. Sabíamos que era um dia atípico. As bochechas dela ficaram um pouco rosadas e, por um brevíssimo momento, os olhos parecem ter se enchido de água. Estava cansada. Cansada e tensa, a postura dura entregava. Soube do meu aniversário e me parabenizou. Comentamos sobre outras datas felizes que passamos no restaurante dela, e nos respondeu com um ditado italiano, do qual somente entendi a palavra fortuna. Queria dizer que a tradição de comemorar ali trazia sorte. Verdade. Polidíssima, se despediu após agradecer pelos elogios.

Ficamos mais alguns minutos, comentando sobre como a ida ali era um evento anual que limpava as nossas contas e nos questionando o que havia acontecido. Faltou algum funcionário? Algum problema com o maquinário? Ninguém perguntou à chefe quando teve a oportunidade. Importa? Pode ter sido apenas um dia ruim. Importam mais os bons (e, nesse caso, os ótimos). Ano que vem, repetiremos a dose.

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caroline machado
a coluna

escritora e estudante. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna.