O novo, de novo

caroline machado
a coluna
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3 min readNov 15, 2021

Há uma coisa que a minha geração — apesar de jovem — tem e que as seguintes, ao menos em sua maioria, não terão: a ausência de lembranças da primeira vez das coisas.

Imagem de Erika Wittlieb

Com a evolução da tecnologia, tudo passou a ser documentado. A primeira vez que Renatinho comeu brócolis, que Carlinha pisou na grama, que Arielzinha andou de bicicleta ou que Rebequinha foi à praia e viu a imensidão do mar se estendendo diante de seus olhos. Na ocasião, conforme vemos no vídeo, ele chorou muito, ou riu bastante, ou permaneceu do olhos arregalados. Não há espaço, portanto, para o vácuo deixado pela ausência de lembranças.

Em especial após chegar na vida adulta, nas ocasiões em que frequentei a praia, tirei alguns momentos para imaginar como será que foi meu primeiro contato com o mar, aquele amontoado lindo e assustador de água, que já estava ali muito antes do dia em que nasci e (assim espero) ali estará muito depois do dia em que morrer.

Sobre a praia, não sei, porém tenho uma vaga lembrança, que pode ou não ter sido fabricada, do dia em que aprendi a andar de bicicleta. Era uma magrela rosa, com aros pretos e rodinhas no mesmo tom. Estávamos eu e ela na casa da minha avó, e me recordo de estar colocando bastante força nas pernocas finas. Quando vi, estava andando naquele veículo de duas rodas (ignoremos as de apoio). Uma pequena pedalada para a humanidade, mas gigantesca para mim.

Anteontem, num sábado ensolarado após uma sequência de chuvosos, saí para andar de bicicleta, pela primeira vez em dois anos, na orla da praia de Itapema. Senti o vento no rosto e observei a face das pessoas que ali estavam — com suas cuias de chimarrão e cangas. O momento, estendido por um par de horas, foi novo de novo, pois não me recordo da primeira vez realizando aquela mesma atividade.

A dezena de fotos registrando o momento não são capazes de transmitir, somente de fazer recordar, todos os sentimentos que me atravessaram. Nenhum vídeo foi gravado. As expressões estão todas congeladas, quando muito. Foi a primeira vez de algo que repeti diversas vezes antes, mas nunca reparei o elemento do “novo”. Agora, reparei.

Se alguém me perguntar, pretendo continuar sem gravar de forma material, porque a mente é a câmera de mais alta resolução já inventada. Ademais, as lacunas, na pior das hipóteses, me permitem imaginar como tudo aconteceu. Na minha fantasia, uma Caroline miúda viu o mar e temeu, embora parecesse hipnotizada. Com as pernas curtas, sentiu os dedos ainda menores dos pés tocando a areia até chegar na água, porém recuou. Precisou de um adulto para lhe carregar nos braços e mostrar que tudo ficaria bem. E tudo ficou. Se a história for diferente, não me contem.

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caroline machado
a coluna

escritora e estudante. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna.