O velho na faixa de pedestres

caroline machado
a coluna
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3 min readDec 1, 2021

Por entre as grades arabescadas, vi este homem: um velho de curtos cabelos grisalhos e longos bigodes no mesmo tom — ou, caso prefira, sem tom algum — , com calças e tênis pretos que, de onde observava, confundiam-se, e um suéter cinza giz, que lhe cobria o peito e os braços, sob uma jaqueta preta com faixas brancas. Não havia nada particularmente especial naquele homem cujos olhos eu não conseguia enxergar, não fosse pela sua estranha decisão de permanecer insistentemente parado sobre a faixa de pedestres, no espaço entre a segunda e a terceira listra branca, no meio da esquina.

O vento, eu imaginava à distância, devia lhe fazer doer as pontas dos dedos, por isso as mantinha enfiadas nos bolsos e dobrava as pernas curtas sem sair do lugar. Foi num nanossegundo que consegui identificar seu bigode, pois, no resto do tempo, ficou de costas, alheio ao meu olhar.

Eu estava trabalhando — embora haja quem duvide dessa afirmação — , mas os vagarosos minutos pareceram acelerar-se enquanto o observava. Passou uma moto ao seu lado, mas o velho não se moveu. E outra, da mesma forma. De repente, um carro grande, que poderia arremessá-lo a muitos e muitos metros de distância, diminuiu sua velocidade e, com tranquilas passadas, o homem abriu passagem, mas não subiu na calçada. Permaneceu ali, no canto da faixa enquanto o carro passava, só para depois retornar ao centro.

“Se for doido, a gente chama o SAMU”, minha mãe resmungou depois que a chamei para ver a cena. “Sabe”, disse um cliente, “ele está no telefone, não está?”. Não, não estava. Mas depois alguém o telefonou, de fato, e ele parecia bravo, gesticulando enquanto seu bigode dançava sobre os lábios e seus pés inquietos caminhavam para lá e para cá na rua.
Quando a ligação acabou, finalmente o velho subiu a calçada e abriu a porta de um carro preto — cujo modelo não consegui identificar, pois pouco me interessa saber dos modelos dos carros -, tirou a jaqueta e a jogou no banco traseiro. Bateu a porta e voltou ao seu posto na sequência.

Aí, um casal de clientes cerceou minha visão e, enquanto discutiam suavemente sobre se deveriam ou não levar um frango assado, eu só pensava no velho. A mulher, com grandes esmeraldas verdes no lugar dos olhos, parecia angustiada pela indecisão. Espiei de esguelha por entre as cabeças e, felizmente, o protagonista deste conto permanecia imóvel. E então, o casal se decidiu. “Se não comermos, amanhã eu devolvo”, brincou o homem. Mostramos todos os três as nossas lustrosas canjicas e logo todos partiram, menos o homem no meio da estrada.

Enquanto o observava, pensei em escrever algo para contar ao mundo sobre sua pequena e perigosa aventura em pleno sábado de manhã. Num segundo, mudei de ideia: “não, não vou escrever nada”. Depois, de novo — como me é típico — , e tirei o celular do bolso e coloquei meus polegares para trabalhar.

“Você não vai comer?”, perguntaram-me os presentes, cada um a seu tempo, ao que respondi um “depois, depois” e voltei a observar o velho, mas ele não estava mais lá. Perdi o final da história. O carro havia sumido também e chateou-me a constatação de que sou uma observadora mixuruca — minha visão periférica e meus ouvidos não captaram a partida triunfal do peculiar bigodudo.

A fome foi-se de vez. Comi meio tomate — e nesse ínterim respondi duas vezes que não, não almoçaria — e fiquei pensando que, se o velho foi uma alucinação, pelo menos foi coletiva.

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caroline machado
a coluna

escritora e estudante. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna.