Valesca Popozuda e Shakespeare

caroline machado
a coluna
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4 min readAug 1, 2022

Pela primeira vez em mais de 3 anos, fui a um show. A cantora era Valesca Reis Santos, mais conhecida como Valesca Popozuda.

Os debates começaram depois do retorno à vida cotidiana, porque postei que estava no show em uma rede social. Alguns até espernearam, se é que posso usar este termo sem parecer que convivo com infantes. Houve um pânico geral pela minha escolha e muitos “como assim?” lançados à minha pessoa.

Na vida privada, me consideram tímida. Eu não costumo falar extensivamente, enrubesço diante de qualquer elogio e guardo meus gostos para mim, exceto quando os exponho na minha coluna quinzenal. Por isso, o choque de saber que eu estive no show de uma figura tão “controversa” para os tradicionalistas — e até para os que não o são.

O show, à par do banho de gin que tomei de um aloprado, foi muito bacana. Valesca cantou suas músicas antigas e recentes, além de outros clássicos do funk carioca; foi enérgica — em especial quando se considera que já tinha realizado outra performance na mesma noite — e, acompanhada por dois dançarinos, entregou o que, para mim, se enquadra nos conceitos de divertimento e lazer.

Na casa, as músicas explícitas ecoavam também nas bocas da plateia, composta apenas por pessoas pelas quais a maioridade fora alcançada. Usando roupas nada reveladoras e performando coreografias extremamente brandas no teor sexual, a cantora finalizou o show por volta das 5h.

No dia seguinte, recuperados os pés cansados, tive uma conversa muito importante sobre o papel de Valesca na cultura nacional e os estigmas que enfrenta até hoje, porque, na verdade, é figura mais presente no cotidiano geral do que se imagina.

Grandes hits internacionais de teor sexual elevado embalam os almoços de muitas famílias, alheias ao verdadeiro teor das palavras estrangeiras; no TikTok, coreografias de reais “danças do acasalamento” são aprendidas por crianças, que as reprisam enquanto os pais dão gargalhadas pela inocência; no vídeo da música que levou o Brasil à primeira posição nas mais ouvidas da maior plataforma de streaming musical do mundo, poucas roupas e simulações sexuais não faltaram.

A honestidade é difícil, porque temos que enfrentar a nossa própria hipocrisia. No meu caso, a partir da exposição da minha ida ao show, reconheci meu próprio preconceito. De pronto, pensei que a associação dos meus gostos pessoais poderia impedir que novas pessoas tivessem o desejo de conhecer a minha escrita, trabalho que busco exercer com seriedade e paixão. Contudo, descobri que colocar isto em pauta é diminuir a importância do trabalho de Valesca e, mais do que isso, me colocar numa posição de superioridade — vide o caso Gabriela Prioli no carnaval 2022.

Não demorou muito para que eu me recordasse da peça Otelo, de Shakespeare. Na história, dos anos 1600, para descrever o relacionamento sexual entre Otelo e Desdêmona, utiliza o termo “besta de duas costas”, algo suficientemente explícito para ser visto com bons olhos. É poético, é lírico. Tanto, que não tive problemas em reprisar o termo na minha obra mais recente (ainda a ser lançada). Mais: a menção do nome da Shakespeare me faz pensar que as pessoas poderiam valorizar ainda mais as minhas obras, pois supostamente bebo das fontes “certas”.

Verdade seja dita: a minha escrita somente existe por causa de experiências como a do show da Valesca e da leitura de Otelo, não apesar destas experiências, porque, como divertimento, obtive formas diversas de gozo de cada uma delas ( honestamente, estou mais propensa a repetir o show do que a leitura) e, como inspiração, atuaram de maneiras diferentes sobre o meu processo criativo. Otelo não foi melhor do que a performance de Valesca, e vice-versa.

Como alguém que busca retratar pequenos pedaços da vida, eu entendi (e também me foi dita) a importância de viver. E o viver, para bem, espero, se dá apesar da opinião alheia.

Ao fim e ao cabo, o conflito em mim me fez perceber que se a notícia do meu gosto pelo funk (ou por Shakespeare) de alguma forma minimiza o interesse dos outros quanto ao meu trabalho, sem que me seja dado o benefício da dúvida, talvez o que produzo não vá mesmo lhes interessar.

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caroline machado
a coluna

escritora e estudante. autora de “Como matar Olga?” (2019). co-criadora da @acoluna.