O Maior Obstáculo ao Conhecimento

E o que significa cultivar a capacidade negativa diante da vida

André Camargo
Revista Tudo é Sagrado
4 min readSep 30, 2021

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imagem: Chraecker

“À beira daquilo que sabemos, em contato com o oceano do desconhecido, reluzem o mistério e a beleza do mundo.”

Carlo Rovelli

por André Camargo

Já ouviu falar da Biblioteca do Congresso Americano?

Trata-se da maior biblioteca do mundo, com um acervo de mais de 155 milhões de itens disponíveis em 470 idiomas!

Um lugar em que, claramente, alguns de nós jamais deveriam entrar, sob o risco de nunca mais sair.

Entre 1975 e 1987, a Biblioteca do Congresso foi dirigida pelo escritor e historiador Daniel Boorstin, vencedor do Prêmio Pulitzer de História em 1974.

É dele esta frase que li recentemente, e de que tanto gostei:

“O maior obstáculo ao conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão de conhecimento.”

Tenho a impressão de que essa frase nunca foi tão pertinente quanto nos tempos atuais, em que, de acordo com o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco, “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”.

A verdade, porém, é que nada disso é novo.

Sócrates, no raiar da tradição filosófica ocidental, bem poderia ter afirmado algo como “a Ágora (praça pública onde os atenienses se encontravam e batiam papo) deu voz a uma legião de imbecis”.

Aos perigos da ilusão de saber que dispensa o investigar, o filósofo grego propôs como antídoto uma postura intelectual enganosamente simples, que se condensa na frase célebre “só sei que nada sei”.

Como bem sabemos, todavia, de tanto provar que as pessoas não sabiam bem do que estavam falando, Sócrates acabou condenado a beber cicuta.

Pausa dramática.

Agora quero introduzir uma distinção.

Uma coisa é usar a ideia de que “o que você acha que sabe te impede de ver” para apontar o dedo para os outros, como talvez fosse a grande curtição de Sócrates.

Outra coisa é adotá-la para o autoexame, como antídoto ao autoengano, como convite à intuição criativa ou como abertura ao transcendente.

Pouco antes de morrer, em uma espécie de confidência pública, Sir Isaac Newton afirmou:

“Não sei como pareço aos olhos do mundo, mas eu mesmo me vejo como um garoto que brincava na praia e se divertia ao encontrar uma pedrinha mais lisa ou uma concha mais bonita que de costume, enquanto o grande oceano da verdade se estendia inexplorado diante de mim.”

Essa frase me desconcerta, em vários níveis.

No campo da literatura, quem talvez tenha produzido a mais potente exposição da escuridão como disciplina do espírito, foi o poeta romântico John Keats.

Keats cunhou o termo capacidade negativa — que depois conquistaria um lugar estratégico na obra do psicanalista Wilfred Bion.

O Pe. José Tolentino Mendonça, Vice-reitor da Universidade Católica de Lisboa, apresenta a ideia com força poética singular. Diz ele:

É a uma carta do poeta John Keats que se deve a origem deste curioso conceito. A 22 de dezembro de 1817, ele escrevia aos irmãos, George e Thomas, anunciando haver compreendido qual era o segredo que garantia a realização plena de um homem e o tornava, como ele dizia, a “man of achievement”.

Este segredo era a capacidade de caminhar na incerteza; de se deixar fluir através dos enigmas da vida, mesmo na dúvida; de se abandonar serenamente ao que lhe é dado viver, sem escapismos nem ressentimentos; e, sobretudo, a capacidade de não cair no erro de avaliar unicamente o caudal da existência pela viciada máquina do cálculo ou da razão.

Os trabalhos da vida em nós estão para lá disso, insistia Keats. E um dos mestres para o qual apontava era Shakespeare, pois num grande poeta o sentido da beleza declara supérflua qualquer outra consideração.

A esta resiliência para conduzir a embarcação que nos pertence através do oceano vasto e desconhecido, na ausência de mapas e de formas exaustivas de controle, John Keats designava como “capacidade negativa” (negative capability).

“Negativa” porque contraposta à necessidade “positiva”, que reconhecemos em nós, de prever tudo, de perscrutar cada pequeno acontecimento pela lente da razão ou de lhes assegurar, de imediato, um desfecho, como se a vida fosse orientada por um guião.

Pouco tempo atrás, comecei a investigar o tema da percepção de si, do quanto cada um de nós chega a enxergar o que sentimos e fazemos. E a magnitude das lacunas na autopercepção, tanto na pesquisa que consultei quanto no que passei a verificar em mim mesmo, são assustadoras.

A gente acha que sabe, age como se soubesse, mas desconhecemos tanto! O pior? Sequer nos damos conta de que não enxergamos o que não enxergamos.

Mais recentemente, resolvi ler por inteiro um clássico polêmico do meu tempo, O Tao da Física, de Fritjof Capra.

Já ouviu falar?

O pessoal da espiritualidade tende a gostar muito; os físicos, nem tanto.

Do meu ponto de vista, Capra apresenta argumentos contundentes sobre quão limitado é o que podemos conhecer a respeito da vida e do mundo através das lentes da Ciência iluminista — expoente máximo, talvez, do que o padre José Tolentino chamou de “necessidade positiva de prever tudo”.

Fica cada vez mais claro, para mim — confesso: não sem uma boa dose de angústia, que, em linha sobretudo com as filosofias hinduísta, budista e taoísta, além de Sócrates e Platão com a Alegoria da Caverna, o filme Matrix e tantas outras referências, fica cada vez mais claro que construímos e habitamos bolhas de realidade que nos entretêm mas, ao fazê-lo, também nos mantêm presos ao mesmo, indiferentes ao mistério e à beleza do mundo.

Vou lentamente aprendendo que, às vezes, o melhor que podemos fazer é apagar a luz, para no escuro enxergar mais claro.

Por hoje é só.

Se cuide e até a próxima!

André Camargo é autor do livro “O Poodle de Schopenhauer” e do artigo mais lido do Linkedin em 2017.

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